15 de junho de 2022

Precisamos de Drag Queens no café especial

Compartilhar:

Por Cauã Sperling, colunista do PDG Brasil

Para aqueles que não me conhecem (acho que a esmagadora maioria), já explico que minhas associações poderão parecer ser aleatórias, mas se mostram (algumas vezes) pertinentes. 

Trabalho com café especial há seis anos, mas sou advogado de origem. Acabei mudando de área profissional após uma boa xícara do, até então para mim desconhecido, café especial. E agora sigo com todos os meus esforços sendo aplicados para a maior compreensão dessa bebida.

Para isso, larguei o direito e montei uma cafeteria móvel em um caminhão antigo, aprendi a extrair diversos métodos de preparo, participei de campeonatos, treinei competidores, aprendi a comprar e torrar café verde, fui ver ao vivo o processamento e a colheita do café e suas diversas técnicas, mudei para uma cafeteria física, fiz consultorias de outras e sigo aprendendo sempre nessa área.

Você também pode gostar de ler O dilema da temperatura do cappuccino no Brasil.  

drag queens no café

Mas e as Drags Queens? Pois é aqui que entram: para a minha vergonha por muito tempo acreditei que o termo Drag Queen se referia apenas a homens vestidos de mulheres em boates e baladas como entretenimento. 

Lembro-me claramente de assistir a primeira vez, após inúmeras recomendações, um reality show de competição de Drag Queens chamado “RuPaul’s Drag Race”, me questionando se de fato existia algo interessante a ser assistido e não apenas algo monótono com simples trocas de roupa e looks.

Eis que fui surpreendido e fisgado. A cada novo episódio, os inusitados desafios impostos demonstravam as incríveis habilidades requeridas, que de tão complexas muitas vezes levam anos para serem desenvolvidas e aperfeiçoadas. 

Era uma loucura, completamente inovador e, o mais importante, divertido de se assistir.

Não era apenas se vestir de mulher e desfilar. Era muito mais do que isso. Estamos falando de profissionais que precisavam ser estilistas, costureiras, comediantes, mestres de atuação, cantoras, modelos, maquiadoras, dançarinas e debochadas. 

E, para isso, usavam diversas ferramentas artísticas e culturais para se expressar e sobressair em relação às demais competidoras. São inúmeros os sacrifícios físicos e pessoais exigidos, mesmo que sem retorno até então, pois a profissão, para a grande maioria, era praticamente invisível, ou jogada para baixo do tapete. 

Visivelmente a produção da 1ª temporada teve um orçamento muito baixo, pois não se apostava que seria um grande sucesso. 

Ficou claro que o objetivo não era só a autopromoção de RuPaul, criador e financiador do programa, mas sim mostrar a beleza e complexidade de uma profissão, que, por estar em um nicho específico e marginalizado, com um histórico de preconceito, não era nada valorizado. 

Portas foram abertas para o reconhecimento de profissionais, que em alguns casos, tinham mais de 30 anos de carreira sem o devido reconhecimento como artistas. Com sua presença, talento e carisma, fisgaram pessoas aleatórias e ignorantes como eu, e tornaram o programa um dos mais assistidos nos EUA, ganhando quatro Prêmios Emmy, um Critic Choice Awards, além de tantas outras indicações e premiações. 

É uma competição, mas fica claro que também é um trabalho coletivo, uma junção de forças para alcançar uma visibilidade maior da profissão e alavancar um mercado profissional. 

drag queens no café

Mas que raios isso tem a ver com café especial e o título deste texto?

Simples: para trabalhar com café especial os profissionais precisam ser versáteis, criativos, técnicos, estudiosos e corajosos, podendo facilmente se espelhar na garra que uma Drag Queen tem. Deveríamos adotar a mentalidade e filosofia de trabalho delas, pois possuímos imensas similaridades, quer ver só?

O barista precisa entender de atendimento ao público, extração de espresso, coado e outros métodos, tipos de processamentos do café após a colheita, análise sensorial, tipos de torra, manutenção de máquinas (imprevistos sempre acontecem), regras de manuseio de alimentos, harmonização de sabores, lavar louça, limpeza da estação de trabalho, resistência física (haja coluna pra ficar em pé grande parte do tempo), e até psicologia (lê de novo que o primeiro item foi atendimento ao público), e tudo isso sendo carismático e com um sorriso no rosto (não existe acordar com o pé esquerdo pra quem trabalha com atendimento ao público, já perceberam isso?). 

“Nós, baristas, deveríamos adotar a mentalidade e a filosofia de trabalho das Drag Queens, pois possuímos imensas similaridades.”

Também temos nossas “casas drags”, que são nossos grupinhos, nichos, escolas de pensamento, casas favoritas e rivais. Será que ele faz filtrado a La Matt Perger ou a Tetsu Kasuya? 1:10 ou 1:15? Scott Rao ou James Hoffmann? 

E tudo isso acompanhado de um acúmulo de funções e incríveis habilidades requeridas para que seu café chegue na mesa, da melhor e mais gostosa forma possível.

Fica muito claro que, similar ao caso das drags, essas habilidades, técnicas e sacrifícios passam despercebidas, por vezes não sendo respeitadas ou sequer reconhecidas, tornando-se praticamente invisíveis. 

Não fica claro ao consumidor que ninguém escolhe abrir uma cafeteria ou trabalhar de barista para ficar milionário, no mercado de hoje. A maior força motriz do café especial ainda é o amor (por vezes acompanhado da necessidade de trabalho) e jamais o retorno financeiro.

E, nesse aspecto, estamos em pior situação, pois não existe uma figura RuPaul barista, que vai conseguir evidenciar a qualidade e a importância desse trabalho, demonstrando como ele contribui e faz parte da alta gastronomia, e como temos muito a ensinar e a implementar nesse cenário. 

vida de barista

No seu programa matinal da televisão, não vai aparecer a importância de não se vaporizar o leite a mais de 70ºC, explicando que, acima dessa temperatura temos uma perda de textura e sabor, motivo pelo qual em cafeterias sérias não se serve a bebida pegando fogo, mas talvez apareça alguém fazendo uma latte art bonita. Não teremos no “Jornal Nacional” imagens de repórteres disfarçados filmando clientes desrespeitando o cardápio, exigindo e consumindo coados com leite em cafeterias de cafés especiais. Não temos o respeito necessário.

Ninguém entra no D.O.M. e pede para tirar as formigas do prato, ou avisa a Helena Rizzo que não quer o molho de tucupi do peixe. Contudo, a cada 30 minutos existe alguém pedindo a um barista um espresso ¾, e que raios seria isso? É ¾ da minha xícara de 45 ml ou da xícara de 60 ml da outra cafeteria? (Na verdade nem espresso isso é, mas isso também é um assunto para outro momento) Horas e horas de estudo e regulagem e prova de espresso para entregar uma receita aleatória, com base apenas na percepção do consumidor no preenchimento de uma xícara…

Pra quem assistiu, ou ficar com interesse de assistir, repare que no programa ninguém pede a Sasha Velour que deixe o cabelo crescer para se adequar ao padrão (feminino) das outras drags. 

Todos os que competem têm sua persona clara e sabem o que querem fazer com ela, e aceitam ou não os conselhos técnicos e desejos dos consumidores para melhorar sua performance ou torná-la mais interessante. Mas, no final das contas, eles sabem que são os controladores daquela entrega, tendo estudado e sacrificado muito, e possuem perante o consumidor o respeito necessário para firmar a palavra final do que vai ser feito ou não. Assim como um chef de cozinha, um mestre cervejeiro, um mixologista…, mas não um barista.

É por isso que precisamos de mais Drag Queens no café especial. Temos que incorporar a mentalidade solidária entre nossos pares, com foco em melhorar o mercado como um todo, emprestar perucas e técnicas de extração, mas sempre competindo sem hostilidade e pela qualidade. Assim, tornando essa competição interessante e educativa para quem assiste e convertendo pela curiosidade e entretenimento mesmo quem não pertença a essa realidade.

Nunca fui a um show drag, nem comi em um restaurante estrelado pelo “Guia Michelin”, mas respeito igualmente toda a cadeia profissional envolvida de ambos.

barista de café especial

Puxando já assunto para outros temas e encerrando essa loucura, sem um RuPaul perdemos todos os dias excelentes jovens baristas para outras profissões mais convencionais e consolidadas, seja pela maior segurança financeira, seja pelo maior prestígio social. 

Não é missão fácil esclarecer para a maioria do mercado de que café é sim complexo e sofisticado. Mesmo usando refratômetro e provando minhas receitas e cafés todos os dias,  acreditam que apenas aperto botões.

Por isso, tenho imensa gratidão ao PDG Brasil por dar voz aos loucos e chatos do café. Foi-se o tempo do espresso com X ou com S.

Créditos: Greta Hoffman (drag se maquiando); Kamaji Ogino (cabelo laranja); Quang Nguyen Vinh (barista moendo café); Di Bella Coffee (barista com copo).

PDG Brasil

Quer ler mais artigos como este? Assine a nossa newsletter!

Compartilhar: