O dilema da temperatura do cappuccino no Brasil
Uma das bebidas com café mais consumidas em todo o mundo, o cappuccino tem espaço garantido no coração de milhares de frequentadores de cafeterias. Combinação de espresso, leite e creme do leite vaporizado, também conhecido como “espuma”, deve apresentar cremosidade e doçura e ter o sabor de café bem presente, facilmente reconhecível. A regra é clara, mas no Brasil os baristas vivem um dilema: como deve ser a temperatura do cappuccino?
Apesar de estarmos em um país tropical, popularmente gostamos do café e de tudo o que é feito dele em temperaturas altas, quase queimando a língua. O que os baristas devem fazer então? O cappuccino mais para morno, na temperatura tecnicamente ideal, ou quente, pelando, como o cliente quer?
Para trazer à mesa esse debate delicioso (e cremoso), o PDG Brasil conversou com três dos baristas mais conhecedores de cappuccino do país: Luciano Salomão, da Sensory Coffee Roasters, Daniel Acosta Busch, bicampeão nacional de latte art, e Lidiane Santos, proprietária da Kaffe Torrefação.
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O que é um cappuccino perfeito?
Cá entre nós, vai longe o tempo em que a gente tinha de buscar a perfeição em tudo, mas, vale resgatar aqui alguns parâmetros que regem o mercado e ditam algumas diretrizes. O objetivo é uniformizar a bebida, especialmente para campeonatos, nos quais profissionais do mundo inteiro têm suas bebidas comparadas, e também dar um ponto de partida para quem está começando.
Luciano Salomão é um dos melhores baristas do Brasil, com 16 anos de experiência em alguns dos mais prestigiados balcões de São Paulo (Santo Grão, Coffee Lab, Sofá Café) e também com grande vivência como mestre de torras (Wolff Café) e instrutor e assistente de qualidade (Sensory Coffee Roasters).
Ele diz: “Segundo o WBC (Campeonato Mundial de Barista), o cappuccino é uma bebida feita em xícara com volume entre 150 e 170 ml. O sabor é um equilíbrio entre o espresso, o leite e o creme do leite vaporizado. Sua receita é: uma dose de espresso (algo entre 25/35 ml) e leite vaporizado”.
“O cappuccino precisa ser servido a uma temperatura entre 50 e 65ºC.”
Lidiane Santos é referência quando se fala em café especial na região nordeste do Brasil. Barista e sócia-proprietária da Kaffe Torrefação e Treinamento, Lidiane foi jurada do Campeonato Brasileiro de Barista e do Campeonato de Latte Art inúmeras vezes.
Para ela, “cappuccino é uma bebida que deve ter harmonia entre a dose de espresso e a de leite. A espuma deve ser lisa, brilhante, e o desenho deve ter contraste e simetria no latte art”.
“O balanço de sabor, consistência e persistência da espuma, com certa elasticidade, são atributos que compõem uma bebida que surpreende sensorialmente.”
Como se não bastasse ser bicampeão do Campeonato Brasileiro de Latte Art (2015 e 2018), consultor, barista e mestre de torras, Daniel Acosta Busch é também embaixador da Nude, marca de leites de origem vegetal. Especialista em cappuccinos, Daniel lembra que cada café requer um olhar mais próximo.
“Quando se fala em temperatura precisamos levar em conta sob qual prisma está se observando. Geralmente as temperaturas de espresso não costumam mudar muito (por conta das máquinas), já para preparo do leite, e isso pode depender se é de origem animal ou vegetal, as temperaturas podem variar entre 50ºC e 75ºC.”

Por que a temperatura do cappuccino importa?
Luciano considera muito importante o cappuccino ser preparado dentro dessa faixa de temperatura (50 a 65ºC). “Quando ultrapassamos os 70ºC ou quando o leite atinge ponto de fervura, acontece a quebra das moléculas de proteína. Isso acaba comprometendo não só o sabor, como também a textura.”
“O cappuccino passa a ter um sabor metalizado e rançoso, e sua textura fica cheia de bolhas, o que não queremos, uma vez que ela precisa ser bem lisa”, conta.
Essa visão é compartilhada por Lidiane, que diz: “O cappuccino tecnicamente deve ter a temperatura de 65°C, de morna para quente, para ser bebido em grandes goles. Assim, podemos desfrutar a experiência da textura da espuma cremosa do leite”.
“Quando o leite é super aquecido, perde doçura e textura. Ao esperar a temperatura baixar, a espuma fica densa e perde a elasticidade e maciez”, explica a barista.

Como gostamos do cappuccino no Brasil?
País de dimensões continentais, com grande diversidade de culturas e diferentes realidades quando se trata de consumo de café, o Brasil não se rende muito ao receituário oficial das bebidas cafeinadas.
Lidiane explica que a falta de pessoas qualificadas para o preparo das bebidas nas cafeterias, padarias e restaurantes fez com que o público se acostumasse com bebidas preparadas sempre acima da temperatura ideal. Isso trouxe hábitos de consumo diferentes da proposta do serviço clássico.
“Cafeterias da terceira onda estão seguindo os parâmetros técnicos de equilíbrio de café e leite, como também de textura e temperatura. Porém, os estabelecimentos que não estão alinhados ao conceito de serviço com parâmetros técnicos, servem os cappuccinos com temperatura mais alta, porque, na maioria dos casos, os consumidores estão acostumados a bebidas mais quentes”, explica.
Para Luciano, o que pega é a divergência na receita, que passou por transformações ao longo do tempo. “Muitas cafeterias fazem o cappuccino fora desse padrão (de receita e temperatura) de hoje. Algumas chegam a diferenciar o cappuccino do latte, por exemplo, polvilhando chocolate na superfície da bebida e isso acaba comprometendo o equilíbrio do gosto do café com o leite.” Levante a mão o barista que nunca ouviu: “nesse cappuccino não vai chocolate nem canela?”.
“Os clientes de cafeterias que trabalham com cafés de qualidade mais baixa, quando tomam o cappuccino das cafeterias de alta qualidade, acabam sim reclamando da temperatura ‘baixa’”, conta Luciano. “Já nas cafeterias que trabalham dentro dos padrões de bebida exigida pelo WBC, os clientes já esperam que o cappuccino tenha uma temperatura agradável, sem queimar a boca.”

Existe certo ou errado no cappuccino?
Ah, existe. Ô se existe. Há bebidas que são feitas de maneira tão diferente do que dita a regra que deixam de ser cappuccino. Chocolate em demasia, creme de avelã, chantilly e até açúcar adicionados são transgressões (ou invenções) que deixam de ser preferências. Mas está tudo bem, basta mudar o nome da bebida e ela pode agradar a muitas pessoas.
Quando perguntamos isso para Daniel Busch, ele nos respondeu com uma pergunta: “O que é o certo e o que é o errado?”. “Depende. Como o cappuccino é uma bebida de origem não brasileira, talvez o correto seria fazer como foi originada. Mas, sinceramente, não consigo julgar como errado fazer de uma forma que agrade mais ao público que está tomando a bebida em determinado local.”
Luciano Salomão vai na mesma toada. “O certo é que, ao consumir o cappuccino, o cliente tenha prazer. Quando a cafeteria fica inflexível nesse tema, ela corre o risco de o cliente optar por outro lugar. Uma sugestão é trabalhar dentro do padrão mundial, pelo simples fato de ser o correto, e sempre ter à mão um polvilhador com chocolate e, por que não?, canela também”, recomenda.
“Dessa maneira, satisfazemos o gosto do cliente e não deixamos de fazer o nosso faturamento.”

Como proceder então?
Quando se depara com essas situações, Lidiane opta pelo didatismo. “Procuro explicar aos clientes que uma bebida mais quente compromete a experiência de doçura e corpo. Sugiro que preste atenção no segundo gole, já que a sensação térmica da espuma é mais baixa.”
Além do foco na satisfação do cliente, Luciano Salomão sugere: “Quando o cliente reclamar que a bebida não está tão quente, uma solução é escaldar bem a xícara utilizada. Essa técnica é a mais aconselhável, porque se vaporizarmos o leite acima dos 70ºC, a estrutura da bebida ficará comprometida”.
A dica de Daniel é: “bastante explicação e carinho na hora abordar esses temas com seu cliente costumam funcionar a médio prazo. A gente acaba conseguindo direcioná-los para aquilo que estamos predispostos a servir”. “A importância que damos aos detalhes faz a diferença no final”, completa.
Para finalizar, Lidiane também reforça que a experiência e a dedicação do barista em testes são importantes. “Baristas, experimentem cappuccinos com proporções de café e leite diferentes. Não se prendam aos padrões de um terço de café, um terço de leite e um terço de espuma. Usem volumes de espresso de acordo com as características dos perfis sensoriais dos cafés com os quais estão trabalhando”, aconselha.

Embora haja uma receita padrão para o cappuccino, nem sempre os clientes apreciam a versão clássica. Vale lembrar que a preferência de paladar é totalmente subjetiva e, muitas vezes, mais uma questão de hábito e de características fisiológicas do que de qualquer outra coisa.
Por isso, é importante a gente respeitar as particularidades dos nossos clientes. Seja no Brasil, seja em qualquer outro lugar do mundo. Quando se trata do cappuccino, não é preciso deixar a discussão alcançar altas temperaturas. “Apesar da divergência da sua receita, ele tem um público fiel. Seja como for, é um clássico das cafeterias”, pondera Luciano.
Daniel concorda. “O cappuccino é apenas um café com leite, mas é o melhor tipo de café com leite que se pode ter.”
Para Lidiane, “um cappuccino significa um abraço dentro da xícara. Quando o café e o leite estão em equilíbrio, a experiência surpreende ao primeiro gole”.
Não é para menos. “O cappuccino é uma bebida que conforta a alma”, finaliza Luciano.
Créditos: Munir Bucair (destaque / Daniel Acosta Busch), Luciano Salomão, Lidiane Santos.
PDG Brasil
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