Por dentro da torra de café cereja descascado
Já é de conhecimento comum que o café é um grão que, como muitos outros, precisa do processo de torra para seu consumo tradicional.
A bebida tem extenso histórico de consumo e estudos feitos sobre ela, o que possibilitou a criação de inúmeras variantes de como o grão é tratado após a sua colheita, momento que conhecemos como pós-colheita e, em muitas embalagens de café, descrito como o “processo”.
O processo se trata de como o café é secado após ser colhido e sair do lavador. Podemos manter o fruto inteiro, retirar apenas a casca e manter a polpa, manter parte da polpa ou despolpar completamente.
Cada variante dá aspectos distintos tanto na xícara quanto no ofício de torrar. Para contar um pouco sobre essas diferenças, especialmente a torra de café cereja descascado, o PDG Brasil chamou dois estudiosos e mestres de torra para poder tratar o assunto.
Você também pode gostar de ler O novo momento dos cafés naturais.

Café cereja descascado
Para os mais íntimos das nomenclaturas que levam os processos dentro da indústria do café, o processo cereja descascado, também conhecido por CD, lavado ou washed, se refere ao processo de retirar a casca do café antes da secagem.
Dentro da porteira, esse processo é escolhido por diversos motivos, podendo ser desde estar se querendo um café diferente do processo queridinho do Brasil, o natural, até mesmo para um fator prático de conseguir ter uma consistência melhor na seca do café ou ajudar na seca em regiões mais úmidas do país.
O processo está sendo cada vez mais adotado em território nacional, mas ainda não chega perto da produção do natural, que por sua vez é mais acessível, já que não exige maquinário para poder retirar a casca do café.
Em regiões com altos níveis de umidade e índices pluviométricos, a fermentação acidental é um problema que ocorre quando o café não recebe cuidados suficientes. Nesses casos, o natural não é o tipo de processo que traz notas interessantes: causa o aparecimento de sabor fenólico, ardido. Quando retiramos a casca, facilitamos a seca saudável do café.
Além dos fatores práticos, o processo é muito utilizado em outros países das América Central e do Sul. Seu maior consumidor foi e é até hoje os Estados Unidos, que têm preferência por esse processo de pós-colheita.
Porém o que de fato muda tanto para criarmos preferências culturais pelos processos?

Elvio dos Santos Junior é pesquisador, professor e consultor no setor de torra de café, que possui título de Q-Grader e mestre de torra, além de compartilhar seus conhecimentos na Escola de Café Mestre Cafeeiro. Ele nos explica como essa preferência cultural foi criada.
“Acredito que isso aconteça por conta de dois fatores. Inicialmente por que a illy comprava cafés de qualidade sempre dando preferência aos CDs, o que gerou a cultura de predileção por tais cafés. Seguido da popularização da ideia de que cafés CD são ‘sempre melhores que naturais’, quando na verdade temos qualidade em ambos os processamentos.”
Em relação às peculiaridades na xícara, Elvio diz que, ao comparar os CDs com os naturais, a diferença é bem evidente. “Cafés processados pelo método lavado normalmente apresentam acidez mais evidente e xícaras mais limpas. Normalmente tais características são originadas do tipo de processamento que o grão passa no pós-colheita.”
“Ao tirarmos casca externa e, por vezes, a mucilagem, isso faz com que o tempo de secagem e a possibilidade de fermentações indesejadas se reduzam, contribuindo positivamente para esses atributos encontrados na bebida.”

Fora da porteira
Além de possuir muitos aspectos que o diferenciam no mercado do café, o profissional responsável pela torra também precisa conhecer bem o seu material de trabalho.
O café CD, devido à sua diferença no processo de seca, possui algumas alterações em relação ao natural que podem alterar a forma como o mestre de torra irá trabalhar o café.
Para Letícia Ferreira de Souza, mestre de torra e head barista, possui formação em Gastronomia e pós-graduação em História e Cultura da Alimentação. Ela explica que o café CD passa pela seca sem a casca, apenas a semente com a polpa. “O objetivo é
realçar as características naturais do café e possibilitar essa limpeza no paladar.”
Sobre sua relação com a torra de cafés CD, ela diz: “Gosto de dizer que é um café bem comportado. Recebe bem calor e não atinge temperaturas finais muito altas. Estou acostumada a torrar CD e natural. O natural geralmente é mais ‘marrento’, se recusa a receber calor e dá mais trabalho.”
O aspecto de “café bem comportado” citado por Letícia é resultado de uma menor taxa de umidade e maior homogeneidade da distribuição dessa umidade dentro do grão, o que leva a se tornar algo mais uniforme de trabalhar.
Para Letícia, as vantagens do café lavado podem ser sentidas durante as safras também:
“Gosto da cereja descascada pela consistência, é realmente mais fácil de lidar
durante a torra, se comporta da forma linear em toda a safra e chega bem até o final dos lotes também, não trás gosto de café velho. Geralmente todo mundo que conheço adora cafés naturais, mas acredito que o cereja consegue mostrar um café ‘’redondo’’ e mais limpo, portanto, mais aceitável para pessoas comuns, sem o exotismo que o natural tem.”
Elvio também cita alguns aspectos dentro da torra de cafés CD:
“Cafés CD parecem possuir uma quantidade grande de lignina, o que os deixa mais
resistentes à alta temperatura, bem como reduz a incidência de defeitos de torra como o tipping (quando acontece queima na região embrionária do café) e scorching (chamuscado em uma das faces do café, normalmente a face mais plana).”
Segundo Elvio, nesses cafés CDs é mais fácil definir, por exemplo, quando o café saiu da reação de desidratação e passou para a fase de Maillard, “uma vez que não há um degradê de cores. O lote todo amarela ao mesmo tempo na torra, ficando fácil saber quando o café entrou em Maillard”.
Sobre o estilo de sua torra para esse tipo de café, Elvio conta: “Para os perfis desses cafés, normalmente fazemos uma curva em S onde a seca é mais rápida, reduzindo a temperatura por volta de 140ºC e reduzindo ainda mais próximo de 180ºC um pouco antes do crack”.

Dicas para torrar café cereja descascado (CD)
Um bom (ou uma boa) mestre de torras deve saber torrar diversos tipos de café, realizando estudos, testes e provas para conseguir atingir o melhor resultado possível dentro da xícara para uma experiência única e a valorização do café.
Para auxiliar a quem está iniciando, pedimos aos nossos entrevistados uma lista de dicas que podem ajudar na torra cafés cereja descascado:
- Não tenha medo de torrar cafés CDs realmente bons com uma temperatura mais alta;
- Para esses cafés CDs, dê preferência para uma “rate of rise” (taxa de crescimento de temperatura da massa de café) mais altos. Tais cafés são mais duros e resistentes à passagem de calor;
- Para os lavados de modo geral, prefira torras mais rápidas e com uma temperatura final não tão elevada para preservar o brilho e as notas delicadas;
- Use o tirador de amostras (tryer) e tente encontrar os tons florais e frutados;
- Para os CDs mostre o que ele tem de melhor: notas delicadas e acidez proeminente mantendo a doçura;
- Cuidado especial com a cor de torra, que normalmente engana aqueles que estão acostumados a torrar apenas naturais;
- Caso precise reduzir um pouco a acidez dos cafés CDs, mantenha-se por mais tempo na temperatura entre 180 a 190ºC. Essa é a temperatura de decomposição de ácido cítrico;
- Em casos de acidez pontuda e incômoda, você corrigir fazer isso reduzindo a sua r.o.r. (taxa de crescimento de temperatura da massa de café).

Descanso de café cereja descascado
É importante lembrarmos que os cafés, quando passam pelo processo de torra, acabam liberando o gás carbônico que está em suas moléculas. Isso leva o grão a expandir e dar a potência na xícara de espresso. Mas, se o café não for descansado corretamente após a torra e estiver com muito gás quando formos beber, a real potência da torra vai ficar mascarada.
O descanso do café deve ser estudado de lote para lote, pois depende muito de vários processos e condições geográficas nas quais se encontra. Pelo terroir e processo de pós-colheita, podemos idealizar um tempo de descanso, mas, para realmente estudar o período ideal, Elvio tem uma recomendação.
“Nesse processo de rastreio, deve-se provar esse café com 24 horas por torra, com 3 dias, com 5 dias, com 7 dias, com 15 dias, com 30 dias e com 45 dias após torra no método para o qual o perfil foi feito ou no método para qual a maioria do público vai consumir esse café.” Ele explica que, “conforme acompanhamos as mudanças de sabor, é possível definir quando será seu auge. Talvez a maior influência se dê por conta dos processos de descarbonização que vão contribuir para aumentar a taxa de extração de solúveis e insolúveis do café, bem como a taxa de perda de aromáticos voláteis.”
“O auge é quando se tem ótima extração e pouca perda de voláteis aromáticos.”

O mundo do café é vasto, cheio de aspectos que podem impactar por completo como a bebida vai se apresentar no final. Estudar ao máximo e manter o trabalho de qualidade realizado, da muda até a xícara, é algo necessário para respeitar as peculiaridades de cada café e potencializar o melhor de cada grão.
Créditos: Divulgação Mestre Cafeeiro; Divulgação Letícia Ferreira de Souza (retrato Letícia).
PDG Brasil
Quer ler mais artigos como este? Assine a nossa newsletter!