Contribuições e desafios do Fairtrade de café
A Fairtrade International é uma associação multissetorial sem fins lucrativos, e é a primeira certificação voluntária de produtos, cujas origens datam do movimento europeu de comércio justo datado da década de 1980.
A Fairtrade atua no Brasil desde 2005. Os principais objetivos da associação são o incentivo à produção do café de qualidade em harmonia com o meio ambiente, promovendo tanto benefícios sociais entre as comunidades quanto a sustentabilidade do modelo de negócios de seus associados.
O objetivo deste artigo é explorar o atual panorama da rede de atuação Fairtrade quanto ao café produzido no Brasil.
Para isso, o PDG Brasil conversou com o presidente do Sindicato Rural e diretor de Sustentabilidade da Aprod (Associação dos Cafeicultores de Montanha de Divinolândia), Francisco Sérgio Lange, uma das maiores cooperativas parceiras do Comércio Justo no País, e também com João Mattos, gerente comercial geral da coordenadoria latino-americana e do Caribe (Clac), que engloba o Brasil.

O que é o Fairtrade e como funciona no café?
A base do trabalho realizado por meio do sistema de Comércio Justo é a de disponibilização e suporte quanto a práticas agronômicas modernizadas, treinamentos, monitoramento de gestão, e a promoção e comercialização do café certificado. Os pilares éticos e sociais visam erradicar a pobreza, promover educação escolar primária universal; equidade de gênero e empoderamento das mulheres; desenvolvimento das comunidades e o fomento de oportunidades de emprego.
As despesas dos programas de certificação Fairtrade, ou Comércio Justo, são arcadas pelos compradores, que pagam os custos derivados do selo à organização certificadora, então repassados aos produtores cooperados e associados ao longo de toda a cadeia.
Os compradores adquirem o café em venda direta, realizada pelas cooperativas e associações credenciadas. Os acordos comerciais devem garantir o preço mínimo, acrescido de um prêmio social baseado nesse valor tabelado, ou no preço de mercado, o que for mais vantajoso comercialmente. Com essas regras, as certificadoras protegem os cafeicultores da volatilidade dos preços e de uma possível exploração indevida por parte de importadores.

O Comércio Justo do café no Brasil na prática
São três as redes parceiras que conduzem o trabalho derivado da certificação Fairtrade quanto ao café internacionalmente: a Rede de Café da África (Afn), a Rede de Produtores da Ásia e do Pacífico (Napp) e a Coordenadoria Latinoamericana e do Caribe de Pequenos Produtores de Fairtrade (Clac).
A Clac engloba o Brasil e atualmente tem células de atuação em 26 países da América Latina, com cerca de 115 profissionais espalhados por 26 deles, sendo o escritório central localizado em El Salvador. O produto principal da Clac é o café, mas a coordenadoria atua em conjunto com organizações de produção de uma variada gama de produtos, como açúcar e rapadura, banana e cacau, entre outros.
No Brasil, há três gestores de fortalecimento de negócios e desenvolvimento de café, responsáveis por apoio e suporte direcionado às 32 cooperativas e associações de café que trabalham com a certificação Fairtrade.
Existem também profissionais que atuam no formato “enlace comercial”, na área de vendas e relacionamento, para os 26 países. Todos estão baseados no Brasil, o que inclui João Mattos, que é o gerente comercial geral da coordenadoria. João explica que não há diferenças estruturais quanto ao braço da coordenadoria no Brasil em relação aos outros países.
O processo de captação de produtores não é feito de forma ativa pela Clac, mas sim por meio do trabalho conduzido pelas 32 cooperativas e organizações parceiras.
“A Clac Café no Brasil tem uma entrada muito maior do que outros países membros da coordenadoria”, diz ele. Isso se dá pois os clientes internacionais valorizam o resultado decorrente da certificação em conjunto com os investimentos e incentivos aos produtores, principalmente “os da nova geração, aos quais o acesso a treinamento e volume de informação é superior”, diz.
“O mercado de café gira por meio de projeções de crescimento, e a curva ascendente de produtividade e qualidade agrega valor ao trabalho realizado pela Clac e seus associados quanto aos futuros líderes de produção no Brasil.”

Iniciativas de incentivo aos produtores
A coordenadoria trabalha com duas iniciativas de incentivo aos produtores. Uma delas é a que aborda os prêmios dados aos produtores, nos quais obrigatoriamente 25% do valor total deve ser revertido a projetos discutidos e acordados na assembleia geral, como investimentos nas áreas de meio-ambiente, educação e saúde, qualidade e produtividade. O valor desses prêmios é de 20 centavos por libra.
“Os incentivos são importantes, pois encorajam os produtores a investir na melhoria contínua de produtividade e qualidade, e são uma forma de reconhecimento e valorização deste trabalho”, diz João.
A outra ferramenta usada pela Clac é o já mencionado “preço mínimo”. Para cafés naturais, o valor é de 1,35 dólares por libra, e 1,40 dólares para cafés lavados e cerejas descascadas. Em adição ao prêmio de 20 centavos, a base do preço aplicado pelas cooperativas atingia a média de 1,60 dólares (valor que inclui as despesas de transporte marítimo FOB – “free on board”, arcadas pelos importadores).
“O produtor sabe que, obedecendo às regras da certificação, ele comercializa seu café por um preço que no mínimo irá garantir a sobrevivência e a continuidade na atividade, também pelo prêmio de comércio justo que a associação recebe por cada saca comercializada”, explica Francisco Sérgio.

A visão dos cooperados e associados
Os fundamentos do trabalho gerido pela coordenadoria e pelos associados e cooperados, quanto ao café de Comércio Justo no Brasil têm contribuído efetivamente para fortalecer as relações e potenciais comerciais dos pequenos produtores, segundo Francisco Sérgio.
“Estes são a produção de um café que respeite os direitos do meio ambiente e os direitos sociais, por meio de uma governança séria e transparente, que busca a competitividade com um produto de alta qualidade, com credibilidade (rastreabilidade) e solidez (capacidade de fornecimento), por meio do engajamento dos seus membros associados”, diz ele.
Francisco Sérgio acredita ser a capacidade de aglutinar os pequenos produtores, para que eles aprendam a trabalhar em grupo quando dentro do sistema, um dos “grandes legados do Comércio Justo”.
O trabalho conduzido pela Aprod, que aderiu à certificação em 2012, prova o potencial de sucesso decorrente da linha de trabalho e apoio que provém o Comércio Justo no café.
Atualmente, a Aprod conta com 68 pequenos produtores, cuja produção anual conjunta gira em torno de 12.500 sacas bica corrida. Francisco Sérgio acredita que as maiores vantagens do trabalho conduzido pela Clac são os programas de treinamento, suporte operacional e comercial junto e acompanhamento técnico e verificação da certificação.
As instalações comunitárias da Aprod servem como centro administrativo e social, e também de preparo e análises sensoriais e de qualidade.
Organização coletiva e resultados de sucesso
João diz que um dos grandes exemplos quanto ao sucesso derivado das iniciativas de incentivo é o da Coopervitae. “Além do aumento de volume de produção e qualidade, e de produtores associados, a cooperativa hoje é profissional, ou seja, também atua como trader para outros produtores.”
A Coopervitae presta um serviço coletivo aos aos sócios, que é o subsídio da energia fotovoltaica (produzida a partir da luz solar), gerada pelas duas usinas construídas com os montantes recebidos pelos prêmios. A iniciativa foi decidida de forma democrática em assembleia.
Outro exemplo de uso dos valores dos prêmios pela Coopervitae foi a instauração de escolas e postos de saúde que atendem não só aos sócios, mas também a toda a comunidade.
Entre as cooperativas, também há muitas iniciativas de equidade de gêneros, com mulheres liderando organizações, como é o caso das produtoras do café “Pó de Mulheres”, da Cafesul (Cooperativa dos Cafeicultores do Sul do Espírito Santo), que é 100% feito da variedade conilon, produzido no município de Muqui. Por três anos, os lotes da cooperativa ficaram em primeiro lugar na competição Coffee of The Year, realizada na Semana Internacional do Café.

O Projeto Golden Cup
Em 2017, a coordenadoria do Fairtrade café lançou o projeto Golden Cup, uma competição de qualidade que elege os melhores lotes produzidos por produtores de café de Comércio Justo. O Brasil foi o primeiro entre os 32 países participantes da Clac Café a produzir a iniciativa. A motivação vital da competição, além do incentivo aos produtores, é abrir novos mercados e ampliar relações comerciais para os produtos das cooperativas e associações em território nacional e internacional, e incentivar a produção de café de alta qualidade.
Francisco Sérgio diz que projetos como o Golden Cup contribuem enormemente para que os produtores se sintam reconhecidos e valorizados, o que os incentiva a produzirem cafés de qualidade diferenciada, como os cafés de especialidade, negociados em vendas diretas, à parte do sistema de commodities.
Café Fairtrade é sinônimo de café de qualidade?
Fairtrade é sinônimo de café ético, mas não é necessariamente uma definição de qualidade. Essa realidade, no entanto, vem mudando ao longo dos últimos anos. “O mercado de café Fairtrade de alta qualidade, de cafés especiais, vem crescendo exponencialmente”, garante Francisco Sérgio.
Francisco Sérgio diz que há alguns anos, o café Fairtrade antes era produzido majoritariamente na qualidade de “finecup” (bebida dura), comercializado como commodity, de peneira 14 e acima, com até 25 defeitos.
Outra mudança positiva quanto ao valor agregado ao café Fairtrade se deu pelo recente reconhecimento do consumo consciente de alimentos, produzidos com responsabilidade ambiental e social, e com rastreio e valorização de origem.

Os desafios do Fairtrade de café no Brasil
O atual panorama do mercado de café no Brasil, segundo Francisco Sérgio, ainda não oferece espaços e oportunidades suficientes para garantir que pequenos produtores sejam incluídos de forma competitiva e sustentável.
“E isso determina um índice de baixa competitividade da agricultura familiar e dos pequenos empreendimentos rurais. Romper essa barreira e superar este obstáculo é o maior desafio das pequenas organizações de comércio justo”, diz ele.
Segundo aponta o estudo Ameaças à Certificação Fairtrade na Cafeicultura, publicado pela Universidade Federal de Lavras em 2017, dentre as principais ameaças à prosperidade da certificação no Brasil está o processo de mainstreaming, que é a adoção e utilização da estrutura de Comércio Justo por grandes corporações.
“Compreender essas ameaças e analisar criticamente a adoção da certificação Fairtrade é uma ação fundamental a ser seguida por cafeicultores, cooperativas e associações. Torna-se claro que as entidades certificadoras, de maneira geral, devem atuar de maneira a equilibrar ou neutralizar as desvantagens que podem ser causadas pelo movimento de mainstreaming”, concluem os pesquisadores.
“Mesmo com essas limitações, devemos reconhecer que o Comércio Justo tem sim contribuído enormemente para que os pequenos produtores, quando organizados, tenham acesso a uma nova ordem econômica e social”, acredita Francisco Sérgio.
Outro obstáculo é a recente alta dos preços do café, em conjunto com a crise econômica no país, também escalonada pelo advento do covid-19. De acordo com João, isso implica que a volatilidade do mercado, devido à dependência do dólar em relação ao montante dos prêmios, “enfraqueça um pouco o apelo das vantagens em relação aos produtores quanto à adesão ao sistema de comércio justo”.
“A questão que estamos tentando contornar é que o cenário dos preços atualmente não é tão atrativo em comparação aos dos anos anteriores, nos quais os valores eram mais baixos, e o mercado mais estável”, diz João.
A realidade estrutural e as barreiras entre os produtores
Para Francisco Sérgio, a resistência por parte de uma parcela dos produtores em abraçar novos conhecimentos, hábitos e tecnologias, além da hesitação em desenvolver um trabalho conjunto com outros associados, são outros fatores desafiadores enfrentados pelo segmento da agricultura familiar, quanto ao trabalho das cooperativas de Comércio Justo de café.
O desconhecimento do agronegócio, além do processo produtivo, explica ele, são de origem comportamental: “por terem sido pouco ou quase nada estimulados pelas políticas de assistência técnica e extensão rural oferecidas pelos governos do estado brasileiro historicamente”.
Segundo o agrônomo João Brunelli, da Cati SP (Coordenadoria de Assistência Técnica Integral da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo), a baixa competitividade e alto grau de desconfiança dos pequenos produtores são devidos a um conjunto de fatores complexos: baixo nível de escolaridade, má comunicação, carência de infraestrutura adequada quanto a transporte e armazenamento dos produtos, e acesso limitado a crédito.
“Juntos, esses fatores acarretam em uma fraca organização comunitária, e baixa capacidade gerencial dos produtores, e incipiente conhecimento sobre as demandas de mercado”, explica Francisco Sérgio, “o que acarreta em baixo poder de negociação com grandes empresas de agronegócios”.
O processo de degradação ambiental também contribui para agravar as barreiras socioeconômicas enfrentadas pelo pequeno produtor rural, contribuindo para a dificuldade de inserção e sustentabilidade das pequenas propriedades nas cadeias produtivas.

A percepção quanto à importância das demandas e exigências das práticas promovidas pela certificação Fairtrade “é essencial para que os produtores acessem ou permaneçam nos mercados que atuam, e para terem a possibilidade de alcançar novos mercados”, acredita Francisco Sérgio.
A organização eficaz dos pequenos produtores rurais é o caminho, diz ele, pois fornece um mecanismo viável de ação e atualização contínua, o que promove a competitividade e a sustentabilidade perante ao mercado de café global.
“A união dos produtores, por meio da adesão a associações e cooperativas, capacita a comunidade rural familiar quanto ao enfrentamento de problemas, e proporciona o desenvolvimento da região onde estão inseridos”, diz Francisco Sérgio.
Créditos: Divulgação Aprod (destaque, cafeicultura de montanha, assistência técnica da equipe Fairtrade e entrelinha da lavoura); Divulgação Clac (trabalhador no terreiro, cupping e Gilmar Donizete Oliveira com frutos).
PDG Brasil
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