21 de dezembro de 2022

Como podemos tornar os cafés especiais mais acessíveis?

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Em geral, o café especial sempre foi comercializado como um produto superior, em termos de qualidade, sustentabilidade e experiência do consumidor. No entanto, nos últimos anos, vimos uma mudança progressiva no mercado em direção a uma maior democratização, no sentido de tornar os cafés especiais mais acessíveis e ampliar o acesso a esse nicho de mercado.

Para saber mais, conversei com Wendelien van Bunnik, David Lalonde da Rabbithole Roasters, Maggy Kemunto Nyamumbo da Kahawa 1893 e Abbigail Graupner da Chica Bean. Eles me contaram por que têm a missão de democratizar os cafés especiais e como estão fazendo isso. Continue a ler para saber o que disseram.

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Mesa com diversas xícaas e utensílios para o preparo de cafés especiais

O café especial é muito elitista?

Por trás do setor de cafés especiais está uma comunidade de pessoas unidas pela paixão pelo bom café e pela dedicação à excelência. Há um grande senso de comunidade e lealdade, mas isso tem o potencial de se transformar rapidamente em esnobismo e segregação.

Para o bebedor de café comum, o café especial pode ser assustador. Muitos o veem como um clube exclusivo para o qual não têm o conhecimento ou a experiência necessários para entrar.

Perguntei à Abbigail Graupner, sócia de desenvolvimento de negócios da Chica Bean na Guatemala, se ela acha que o café especial é muito exclusivo. “Absolutamente. É baseado em ser elite. Requer muita educação e recursos, e você tem todo aquele equipamento sofisticado de preparo que algumas pessoas não podem pagar”, ela afirmou.

Além das barreiras de entrada como preço, equipamento e conhecimento, o setor também pode ser bastante crítico. Torras mais escuras, açúcar, leite e qualquer coisa que dilua café de alta qualidade são desaprovados em muitos casos. Também pode haver pouca paciência para ignorância ou erros.

Wendelien van Bunnik é campeã do mundial de AeroPress e influenciadora de café. Ela me conta sobre as expectativas que sente na indústria do café. “Adoro a indústria de cafés especiais, mas odeio como isso me deixa insegura. Agora, como campeã, estou sob ainda mais escrutínio, porque esperam ter todas as respostas.”

Baristas sentadas em um sofá, conversando sobre como tornar os cafés especiais mais acessíveis

Qual é o problema de manter a exclusividade com café?

Alguns podem argumentar que a beleza da especialidade está em sua exclusividade. Você tem que dedicar tempo e esforço para realmente apreciá-lo. Como um bom vinho, a especialidade se dedica aos conhecedores.

O problema com esse conceito é que ele exclui a grande maioria dos bebedores de café. Este é um problema que é muito mais profundo do que você imagina.

Não é bom para os agricultores

Os produtores de café podem vender cafés especiais por um preço mais alto, mas como esse mercado é comparativamente pequeno, o volume não é grande.

A maioria dos produtores obtém a maior parte de sua renda dos segmentos comercial e premium. O segmento de mercado de cafés especiais geralmente traz mais reputação e reconhecimento do que lucro nos moldes atuais.

David Lalonde é o co-fundador da Rabbit Hole Roasters no Canadá.

“Os agricultores muitas vezes não se importam muito com o que fazemos com o café”, diz ele. “Eles querem um salário digno, poder economizar dinheiro e vender seu café a um preço decente.”

Desencoraja o consumidor médio de café

De acordo com David, muitas pessoas querem comprar o modelo sustentável de cafés especiais, mas não se sentem bem-vindas. Em vez disso, ele diz que compram café certificado de comércio justo ou orgânico, que não é necessariamente de melhor qualidade ou vendido por um preço mais alto.

“No entanto, pelo menos eles evitam o julgamento e se sentirem tolos”, diz ele.

Wendelien, por sua vez, teme que o elitismo associado ao setor desencoraje não apenas os consumidores, mas também os baristas iniciantes.

“Existem muitas pessoas curiosas e ansiosas para aprender sobre cafés especiais, mas que não têm um espaço seguro para perguntar, falhar, aprender e crescer”, diz ela. “Sou muito aberta e honesta sobre o fato de que há muito que ainda não sei. É assim que aprendemos.”

É um obstáculo para o crescimento

A comunidade de cafés especiais é comparativamente pequena. Sem novas pessoas, corre o risco de se pregar continuamente para os já convertidos, em vez abrir espaço para inovação.

David me diz que um grande problema com cafés especiais é que as pessoas que o bebem muitas vezes defendem que o segmento permaneça pequeno, impedindo efetivamente que ele evolua. “Eles não pensam em como isso pode afetar toda a cadeia, mais adiante”, diz.

Produtores de café africanos

Por que devemos tornar cafés especiais mais acessíveis a todos?

Democratizar os cafés especiais pode parecer uma perspectiva assustadora para aqueles que temem que o setor seja engolido por grandes torrefadoras comerciais. Então, por que devemos torná-lo mais acessível?

Os produtores podem vender volumes maiores a preços melhores

Em primeiro lugar, aumentar a escala não significa comoditizar o café especial. Ao contrário, trata-se de integrar um modelo de negócios que reconheça o café como um produto diferenciado da fazenda e valorize o trabalho do produtor. Isso tem o potencial de chacoalhar toda a indústria cafeeira e a maneira como ela opera, pois a dinâmica mudará da produção para o consumo.

“O poder de causar impacto está nas massas”, diz Wendelien. “Quando as pessoas aprendem sobre o café como um produto diferenciado, elas se tornam mais conscientes do que está por trás da xícara e do que vale a pena.”

Faz da sustentabilidade o novo padrão e aumenta a responsabilidade

Abbigail diz: “O café especial é mais do que apenas qualidade da bebida. Ele está ligado ao aprimoramento da qualidade de vida e condições de trabalho de todos ao longo da cadeia de valor.”

No longo prazo, ampliar o acesso ao café especial pode significar aumentar a sustentabilidade. Se começar a ocupar um segmento maior do mercado, outros setores terão que intensificar suas práticas sustentáveis para se manterem competitivos.

“Precisamos expandir a definição de café especial para além do sabor”, diz David. “Coisas como abastecimento sustentável, pagamento digno aos agricultores e um preço que significa que torrefadores e importadores podem permanecer no negócio são igualmente (senão mais) importantes”.

Democratiza o café especial

O café especial tende a atender aos consumidores do norte global que são educados e têm uma quantidade confortável de renda disponível.

Maggy Kemunto Nyamumbo é a fundadora da Kahawa 1893. Ela me conta que quando entrou no mercado de cafés especiais, rapidamente percebeu que em sua comunidade de negros, a maioria das pessoas via o café como algo que “não era para eles”.

Ela diz: “Eles veem isso como um ‘produto dos brancos’ que não faz parte da nossa cultura, o que é estranho, porque vem da África! 

“Uma vez, dei o meu café de presente a amigos. Um mês depois, voltei e ainda estava lá. Acontece que eles não sabiam como prepará-lo”, explica. “Mais tarde, quando dei um V60 à minha amiga, ela despejou os grãos nele. Ela não sabia que você tinha que moê-los.

Isso, diz Maggy, foi o que a inspirou a entrar no mercado de serviço-único, como forma de oferecer cafés especiais acessíveis e fáceis de preparar.

Pessoa ao lado de uma gôndola com opções de cafés especiais mais acessíveis

É possível ser especial e acessível?

O argumento aqui não é que todos os produtos de café especial se tornem de nível básico, mas que existam como uma porta de entrada para a introdução de um público mais amplo nesse universo.

No entanto, muitas pessoas do setor ainda veem produtos como esses como “vendidos”, em vez de como uma ponte para os recém-chegados.

“Colin Harmon disse uma vez algo que sempre lembrarei, sobre como você tem que construir confiança antes de poder mudar as coisas”, diz Wendelien. “Se não ouvirmos a demanda do consumidor, tudo o que tentarmos fazer como indústria será em vão.”

David me diz que, claro, Rabbit Hole procura atender as pessoas que amam café com lotes raros e caros. Isso, diz ele, porque a curiosidade é válida e é uma forma de reinvestir esse dinheiro em outras áreas do negócio.

“Temos o lote vencedor do Cup of Excellence Mexico”, diz ele. “Pagamos cerca de USD 155/kg por isso e compramos 15kg. Isso tem o potencial de ser ótimo para nossos negócios e, em última análise, nos ajudar a alcançar nossos outros objetivos.”

No entanto, no outro extremo do espectro, David diz que o Rabbit Hole Roasters também oferece um menu de torras mais escuras. Algumas pessoas disseram a ele que há muito foco lá, mas David e sua parceira de negócios Sophie dizem que estão pressionando pela aceitação de torras mais escuras. Eles vêem isso como uma lacuna no mercado.

“Estamos vendo pessoas em nossa comunidade comprando café especial para eles mesmos e café de supermercado para suas famílias”, explica David. “Isso é uma pena. Queremos possibilitar que essas pessoas encontrem seus cafés sofisticados e torras mais escuras no mesmo lugar.”

Barista feliz, segurando cafeteiras Aeropress

Como democratizar os cafés especiais?

Perguntei aos meus entrevistados como podemos popularizar o café especial e torná-lo mais acessível no futuro.

Leve-se menos a sério

As postagens do Instagram de Wendelien são um ótimo equilíbrio entre conteúdo divertido, informativo e educacional. Ela diz que esta é a maneira perfeita de atrair novas multidões.

“Minha persona no Instagram sou eu me dirigindo à barista que eu era quando comecei há 15 anos”, diz ela. “Quero ser alguém com quem as pessoas que estão começando no café especial possam se relacionar e se abrir. Lembro-me de como era, tentava me encaixar e me sentia mal por fazer muitas perguntas.”

Trabalhe com pessoas que têm os mesmos valores

David diz que é crucial trabalhar com pessoas que compartilham sua visão e se conectar com marcas que tenham princípios semelhantes.

“Não encontramos muitos parceiros atacadistas, mas quando encontramos, é uma combinação perfeita”, diz ele. “Trata-se de criar uma cadeia do grão ao copo, onde todos nos alinhamos em uma visão.

“Poderíamos apenas comprar do Brasil, dar amostras para todos e tentar construir no atacado rapidamente, mas preferimos ser seletivos e permanecer fiéis à nossa missão de ampliar o mercado de cafés especiais e torná-lo acessível a todos.”

Educar e capacitar

Educação e capacitação são importantes. Maggy me disse que investiu muito em dizer às pessoas porque é importante apoiar as mulheres no café e oferece aos clientes opções para ajudar a fazer isso. Ela me diz que os sacos de café Kahawa 1893 também têm um código QR que os consumidores podem digitalizar para dar gorjeta aos agricultores.

“Inicialmente, enviamos para as mulheres uma parte do nosso lucro, mas depois queríamos tornar nossos clientes mais ativos e fazer com que eles se apropriassem dessa ação”, diz ela.

A Rabbit Hole Roasters, por sua vez, reinveste a maior parte de seu lucro na educação do consumidor, de acordo com David. Por exemplo, ele diz que recentemente publicaram alguns artigos sobre o café haitiano.

“Nunca vendemos tanto café quanto com aquele café haitiano”, explica. “Esse foi um resultado direto de nossa pesquisa e conteúdo educacional. Tínhamos um relatório de transparência, uma série de artigos e dividimos o perfil de sabor nas redes sociais. Todas essas coisas despertaram interesse e as pessoas ficaram loucas por isso.”

Atenda às preferências e adote opiniões diferentes

Wendelien diz que a contradição que ela vê é onde o café especial foge de qualquer coisa “comercial”, mas também que precisa disso para sobreviver como indústria.

“Precisamos sair do pedestal, torrar algo que uma maioria maior possa entender e começar a jornada educacional a partir daí”, diz ela. “Não há problema em precisar de uma torra mais escura para ser comercial. Não significa se vender.”

Enquanto isso, Maggy diz que o Kahawa 1893 faz isso visando grandes cadeias de distribuição – que é a principal forma de acesso da maioria dos consumidores ao café.

“Precisamos estar no ponto de venda”, diz ela. “Precisamos expor o maior número possível de pessoas ao café especial e ampliar nosso público.”

Finalmente, David diz que o objetivo é entender que há muitas perspectivas diferentes e valiosas no setor cafeeiro.

“Não se trata de concordar o tempo todo, trata-se de trocar perspectivas e ideias”, diz ele. “Mas não em uma câmara de eco do café especial.”

Mulher negra ao lado de uma embalagem de café da marca da qual é proprietária

Tornar o café especial mais acessível não significa perder o que o torna “especial” ou diminuir seu valor. Pelo contrário, trata-se de compartilhar a paixão por um produto maravilhoso com mais pessoas e distribuir valor de forma mais equitativa em toda a cadeia de produção.

Tornar os cafés especiais menos assustadores para os recém-chegados pode ajudar a desenvolver uma comunidade que já aprecia a qualidade, a habilidade e o trabalho necessários para cultivar, torrar e preparar um café delicioso.

No entanto, para que isso aconteça, a indústria de cafés especiais precisa abandonar seus medos de mudança. Ao fazer isso, pode abraçar seu potencial e impulsionar mudanças sistêmicas reais e positivas para o setor cafeeiro de amanhã.

Você também pode gostar do nosso artigo sobre como redefinir o “ café especial”.

Créditos das fotos: Kahawa 1893, Wendelien van Bunnik, Meklit Mersha

Tradução: Daniela Melfi.

PDG Brasil

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