8 de novembro de 2022

Desvendando a torra do café laurina

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A fase do pós cultivo e beneficiamento, que começa com o torrador e termina com o barista, é importantíssima por valorizar tanto o apelo comercial quanto o trabalho de toda a cadeia produtiva. Variedades raras como a laurina, que passou a ser apreciada pelo mercado de cafés especiais, e eleita por baristas em campeonatos internacionais, demandam tratamento individualizado da semente à xícara. E é no processo de torra que se inicia o caminho rumo a uma bebida final com o maior potencial gustativo de cada lote de grãos de café. Quanto mais raro e caro é o grão verde, maior a responsabilidade do mestre de torra. 

Compreender o panorama das razões que fazem da laurina uma variedade – e cultivar – tão singular no meio dos cafés especiais inclui o entendimento quanto às particularidades do processo de torra ideal desse tipo de cafeeiro. 

Para colaborar nessa jornada, o PDG Brasil busca neste artigo trazer dicas de especialistas para quem vai se aventurar na torra dessa variedade. Siga lendo para saber o que disseram sobre o tema. 

Leia também: IAC avança em busca de novas cultivares de café descafeinadas.

laurina

A variedade laurina explicada

A variedade laurina, referida na literatura científica também com as designações Murta, Bourbon Pointu e Smyrna, é uma variedade espontânea de Coffea arabica, derivada da bourbon e comercializada internacionalmente como uma cultivar. 

A planta é originária do leste da Ilha Reunião, parte de Madagascar, cujo domínio era da França na época do registro da variedade. A Ilha Reunião costumava ser chamada de Ilha “Bourbon” por ser a região nativa da variedade de mesmo nome. As mudas de laurina, registradas por agrônomos franceses no século 19, chegaram ao Brasil um pouco depois. 

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Na década de 1930, foi lançado no Brasil o programa geral de “melhoramento do cafeeiro pela Seção de Genética” no Instituto Agronômico de Campinas (IAC), e a laurina foi uma das variedades estudadas. O IAC selecionou várias plantas para o banco de germoplasma da instituição, nomeadas como ‘laurina IAC 870’ no Registro Nacional de Cultivares (RNC) em 1999.

As descobertas dos cientistas, divulgadas em 1954, quanto às análises do teor de cafeína nas sementes de laurina, revelaram que a planta possuía aproximadamente a metade (0,6%) do teor encontrado em outras cultivares de arábica (média de 1,2%). 

As desafios do plantio de laurina 

Mesmo produzindo uma bebida suave e saborosa, de alta qualidade, a laurina acabou por não ser recomendada para o cultivo em larga escala – sua produção é difícil: as plantas são frágeis e suscetíveis a pragas.

“Não se teve sucesso em sua transferência para cultivares produtivas devido à associação desse fator (baixa cafeína) a características indesejáveis de arquitetura e porte, baixa produção e extrema suscetibilidade à ferrugem”. explica o pesquisador Carlos Henrique Siqueira de Carvalho, no livro “Cultivares de Café”, publicado pela EMBRAPA.

Umas das razões fundamentais que justificam a baixa robustez dos cafeeiros de laurina é justamente o baixo teor de cafeína. A cafeína produzida pelo gênero coffea é uma defesa biológica desenvolvida evolutivamente para proteger os cafeeiros de pragas e conferir resiliência às plantas.

A planta laurina é de pequeno porte, folhas de dimensões reduzidas, frutos afilados na base, sementes pequenas e afiladas (pontudas), que geram pequeno rendimento e  produção reduzida. O nome “Bourbon Pointu”, como também é conhecida a variedade, se refere à natureza pontuda e ovalada das sementes e frutos. 

Por possuírem esse formato ovalado, as sementes do laurina enquadram-se em uma classificação de peneiras ligeiramente menor. Francisco Massucci, da torrefação brasileira Virginia Coffee Roasters, que torra e comercializa um blend de laurina, diz que, de acordo com sua experiência, não há outras características físicas perceptivelmente diferentes, como por exemplo alterações de densidade ou de coloração das sementes. “Mas esses fatores podem ser alterados dependendo do local do plantio e do método de processamento do lote”, explica.

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O valor de mercado da laurina

É atualmente no nicho dos cafés especiais que a laurina é explorada comercialmente – quase que de forma exclusiva. Foi o crescimento desse segmento internacionalmente que gerou o interesse na produção da cultivar, pois a variedade apresenta uma alternativa aos cafés descafeinados quanto ao potencial de qualidade da bebida. O crédito do “ressurgimento” da laurina também se deve ao corpo científico especializado do Brasil, que passou a monitorar o plantio com produtores brasileiros de cafés de especialidade nas últimas três décadas. 

Cultivar laurina demanda um investimento alto em comparação a outras variedades dotadas de características “exóticas”, justamente pela baixa produtividade intrínseca à planta, o que encarece o preço final. O potencial de mercado da laurina, entretanto, fez com que o cultivo da cultivar entrasse no radar de alguns dos players mais inovadores desse mercado. 

A laurina do Brasil no mundo

A Daterra, uma das empresas produtoras de café de especialidade mais conceituadas do Brasil (e do mundo neste mercado), cultiva suas próprias variações de cafeeiros de laurina desde o final da década de 1990. 

Um dos clientes da laurina IAC é a rede de cafeterias e torra de café especializada The Barn, baseada em Berlin. Ralf Rüller, o fundador da empresa, contou ao PDG Global em 2021 que a crescente procura de clientes por opções de cafés com menos cafeína os “fidelizou” à laurina: “Começamos com um slogan que é nossa resposta ao descafeinado: é o café com baixa cafeína, o lowcaf”. 

Ralf explica que há quem beba café à noite, mais pela qualidade da bebida do que para se manter acordado. “Estamos felizes com esse produto e temos uma forte demanda por ele.” Cafés Daterra laurina são vendidos no mercado europeu por preços de em média 21 euros por 100 gramas.

Low Caf versus Café Descafeinado

Vale ressaltar que no Brasil, café “low caffeine” (ou “low caf”) possui entre 0,11 e 0,60% de cafeína, enquanto café descafeinado (independentemente do método de descafeinização), segundo resolução da Anvisa, deve haver até 0,10% de cafeína na composição. 

Além de cultivares como a laurina e a aramosa, não existem cafeeiros cultivados atualmente que sejam completamente descafeinados naturalmente.

“A laurina e a aramosa são muito caras porque são raras e de difícil plantio”, diz Ralf. O ambiente ideal, explica, é em grandes altitudes, onde pragas e doenças geralmente estão menos presentes. Quanto maior a altitude, maiores são os custos de maquinário especializado e de mão de obra especializada. 

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Os pontos mais importantes na torra de laurina

Veja a seguir os aspectos que mais afetam na torra da variedade laurina, segundo os especialistas entrevistados pelo PDG Brasil.

Níveis de cafeína

A presença da cafeína em si não tem influência direta no perfil de torra, diz Francisco, “já que é um dos poucos compostos orgânicos que se mantêm praticamente inalterados durante todo o processo”. 

Entretanto, o maior impacto quanto ao comportamento da laurina na torra se dá de forma indireta: “Ainda que o café especial tenha pouco amargor, a cafeína é responsável pela presença de notas vegetais e levemente amargas. Isso fica muito evidente quando se prova o laurina, já que o conteúdo de cafeína é reduzido, e características como doçura e acidez acabam ficando ainda mais pronunciadas”.

“A possibilidade de potencializar a doçura dos grãos é um dos maiores atrativos da laurina.

O perfil de torra ideal a ser projetado para a laurina deve buscar atingir um resultado final de bebida delicada, com doçura e acidez elevadas”, acredita Francisco.

Conteúdo de óleos dos grãos

Outro fator determinante quanto à torra de laurina é o fato de que a variedade/cultivar, possui uma quantidade significativamente mais baixa de óleos do que a média do grupo de c.arabica.

Isso gera um corpo menor na bebida, mas confere delicadeza e suavidade no paladar, além de acidez elevada.

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Tamanho dos grãos 

A principal diferença quanto a grãos de café de peneira menor é que, durante o processo de torra, o ganho de energia e uniformização de temperatura ocorrem de forma mais rápida, explica Leonardo Jun, barista, classificador de qualidade e mestre de torras na torrefação de cafés especiais na Kento Café Roastery.

“De maneira geral, a torra do laurina é muito semelhante à de outros cafés de peneiras menores. Deve-se atentar para subidas de temperatura, muito rápidas na fase inicial, e com quedas muito bruscas na fase final”, diz Francisco.

Manejo pós-lavoura

Leonardo ressalta que, pelos grãos de laurina serem menores, portanto selecionados em peneiras de números menores, um bom manejo na lavoura e nas etapas de seleção e classificação é vital.

“Grãos de café de tamanho pequeno têm um comportamento que exige mais cuidados na torra. Por serem peneiras menores, as chances de virem junto coisas indesejáveis aumentam, pedindo mais rigor no preparo do lote”, diz ele. 

lowcaf

O perfil sensorial de laurina 

“O esperado para essa variedade é que gere uma bebida de corpo suave e acidez acentuada. O amargor reduzido (relacionado diretamente com o menor índice de cafeína) facilita a percepção das notas mais delicadas, sendo uma bebida muito indicada para métodos filtrados e com uma diluição maior”, diz Francisco. 

No entanto, Francisco ressalta que a variedade laurina selecionada pelo IAC detém uma maior estabilidade genética – e provavelmente características sensoriais distintas – da versão laurina originária de Reunião. “Esse fator somado à realidade de que a expressão do cafeeiro está intimamente ligada ao microclima, terroir e processamento dos frutos, determina que as características da bebida estão sempre associadas a um conjunto complexo de fatores”, explica ele. 

torra laurina

Apesar de ser muito valorizada fora do Brasil, a variedade laurina desenvolvida pelo IAC recebeu “sua chance” com o advento da produção de produtores inovadores de café de especialidade do Brasil. O potencial comercial das vertentes derivadas da laurina brasileira é imenso. A produção em maior escala de cafeeiros laurina de alta qualidade significaria o desenvolvimento de um produto descafeinado nativo do Brasil, para atender o nicho internacional desse tipo de bebida. 

“Do cultivo ao preparo, ainda temos pouca informação e experiência com esse grão aqui no Brasil. O laurina deveria ser mais famoso nacionalmente, pois seu estudo genético é brasileiro e cientificamente, de altíssimo nível”, defende Leonardo Jun.

Crédito: Gregory Reys (máquina de torra/destaque); Adrien Chatenay (CC BY-SA 4.0)/Creative Commons (café laurina processado na mão); Laurina Coffee Roasters; Isabelle Mani (torrefação); Andrew Neele (teste durante a torra); Embrapa Café (pequena máquina de torra); Arquivo PDK Global/Divulgação (laurina em grãos torrados); Divulgação Virginia Coffee Roasters (laboratório de torra); Creative Commons (frutos de laurina/mur).

PDG Brasil

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