10 de outubro de 2022

Já estamos surfando a quarta onda do café?

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Desde a descoberta do café no continente africano e sua dispersão aos demais continentes, houve mudanças radicais nas formas como o consumimos, nos métodos como são preparadas as bebidas, nos locais de consumo, e isso afetou, e talvez tenha mudado, a vida de muitas pessoas que direta ou indiretamente estão associadas à cadeia produtiva do café.

A cadeia produtiva do café é bastante complexa e envolve produtores, beneficiadores, torrefadores, distribuidores, setores de negociação e marketing, fornecedores de embalagens, indústrias, baristas, cafeterias…

Flutuações nos preços, problemas socioeconômicos, pandemia, mudanças climáticas são fenômenos que impactam diretamente a cadeia produtiva do café provocando em muitos casos grandes rupturas que impactam de forma mais intensa países mais vulneráveis, aqueles que produzem café. São exatamente essas rupturas que moldam as ondas do café.

Mas como esses aspectos afetaram recentemente o consumo de café? Será que já estamos na “Quarta Onda”? 

Para explicar melhor esse tema, o PDG Brasil conversou com profissionais de diversos setores da cadeia produtiva do café. 

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home barista

A origem da expressão “ondas do café”

O termo “onda do café” se refere às sucessivas mudanças que o mercado de café passou desde o advento do seu consumo. Essa referência coube à especialista e consultora em café, Trish Rothgeb, em entrevista à revista Roasters Guild Publication em 2002. Na realidade ela se referia especificamente à “terceira onda”. Mal sabia ela que o termo seria usado para definir por inteiro a cadeia produtiva do café.

Quaisquer que sejam as limitações dos modelos de ondas, eles destacam uma questão fundamental: como explicar as mudanças nas práticas do consumidor e nas preferências de café?

onda do café

Como definir uma “onda”?

Ubion Terra, diretor executivo da O’Coffee e membro do conselho diretor da BSCA, afirma que é preciso distinguir “ondas de marolas”. “É preciso estar atento ao que realmente funciona e que existe demanda. É importante inovar, mas também consolidar a inovação”, conclui Terra.

Cada onda começa ou termina quando alguma grande mudança é percebida e provoca profundas rupturas na dinâmica da cadeia do café. O professor Jorge Behrens, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, diz que “uma onda é caracterizada por inovações que são introduzidas no consumo do café, ou seja, uma transformação no hábito como o café é consumido e nas formas como é oferecido.”

Definir o ano exato quando cada onda começa ou termina é muito difícil. Isso não quer dizer que a onda anterior, ou o que ela trouxe com ela, deixou de existir. Cada nova onda carrega elementos da onda anterior. Não significa que ocorra sempre um ganho em qualidade ou desenvolvimento econômico e de sustentabilidade.

onda do café

Primeira onda

A primeira onda não é quando tudo começou, quando os árabes, no século 15, passaram a beber uma infusão com cascas desidratadas de cerejas de café.

Esse primeiro movimento é caracterizado pela produção e pelo consumo em massa de café a partir do século 19, pós-revolução industrial, quando a sociedade passava por profundas mudanças: aumento da oferta de produtos industrializados, aumento populacional e das cidades e crescimento econômico. A qualidade não era o objetivo.

O café se torna uma commodity, ou seja, torna-se um produto negociado no mercado global.

Antes disso, seu consumo era reservado apenas às classes mais favorecidas e entre intelectuais. Nesse período o café começa a fazer parte da rotina das pessoas, presentes nas casas e no trabalho e, portanto, presente no dia a dia.

Muito desse aumento da disponibilidade e conveniência se deve às companhias Folgers e Maxwell House, que lideraram a invenção do coador doméstico. Foi nessa onda que a dona de casa alemã Melitta Bentz desenvolveu e registrou em 20 de junho de 1908 o coador de café de papel. Essa maior acessibilidade de preparo tornou o café muito popular.

Outro fator que catapultou o consumo de café foi o desenvolvimento do café solúvel comercial pela Nestlé, o Nescafé, lançado na Suíça em 1938.

Se fôssemos resumir a primeira onda, “oferta” e “conveniência no preparo” seriam as palavras.

starbucks

Segunda onda

A segunda onda, a partir da segunda metade do século 19, foi marcada pela busca pela qualidade e sustentabilidade.

Aqui, qualidade não se refere apenas ao café, mas também qualidade da experiência de tomar café numa cafeteria, por exemplo.

É nessa onda que a Starbucks é fundada em 1970 em Seattle (EUA), inicialmente comercializando cafés e acessórios de preparo, e posteriormente criando um novo conceito de cafeteria com ambiente aconchegante para “se sentir em casa”.

Em 1982, é fundada a Specialty Coffee Association of America (SCAA), que depois viria a se tornar a Specialty Coffee Association (SCA). Era composta por um pequeno grupo de profissionais do café buscando discutir questões e estabelecer padrões de qualidade para o comércio de cafés especiais.

A sustentabilidade ganhou importância nesse momento com o início das certificações de café voltadas a essa preocupação ambiental, por exemplo a Rainforest Alliance, fundada em 1993, e a primeira versão da ISO 14001, em 1996.

consumo de café

Terceira onda

A terceira onda, já no século 20, não se refere especificamente a uma ruptura, muito pelo contrário, a demanda por qualidade, característica da segunda onda, só aumentou. O que caracteriza a terceira onda é a diferenciação. É a onda dos cafés especiais.

Esse movimento reformulou a cadeia produtiva já que o produto “café” demanda um impacto social, além do econômico. Os consumidores passaram a associar a qualidade do produto com sustentabilidade e, de forma mais relevante, como impacta a vida das pessoas “por trás da xícara”. A cadeia produtiva como um todo ganha destaque ao contrário de apenas o produto final. O movimento Fair Trade redistribuiu lucros e riscos ao longo de toda a cadeia de produção.

Houve o surgimento dos concursos de qualidade nacionais e internacionais, dos campeonatos de baristas e dos cafés “artesanais”, produções pequenas com algum diferencial de pós-colheita, torra etc.

Ubion destaca que se deve ter muito critério nessas diferenciações. Para ele, todo café que realmente tem algo diferente a oferecer esse diferencial deve ser perceptível na xícara. “Muitas vezes as descrições são muito legais, mas não se confirmam na xícara. Ou seja, é crucial ter coerência entre a descrição e a experiência sensorial.” 

E destaca: “É muito importante também que o produtor selecione parceiros comerciais que valorizem seus lotes e que garantam que suas informações cheguem na ponta do consumo final, tudo isso cria uma força de mercado que faz com que cada vez mais as informações da origem da produção cheguem ao consumidor final”.

Nesse período houve um crescimento do conhecimento sobre café, assim como o acesso a informações.

Ficou mais fácil encontrar cafés preparados por métodos até então incomuns, prensa francesa, Chemex, Aeropress, Hario V60, a partir de blends de cafés das mais diferentes origens. Beber cafés especiais passou a ser uma avaliação sensorial, procurando notas específicas e analisando atributos, assim como já ocorre com os vinhos.

torra de café em casa

Estamos numa quarta onda?

As opiniões dos especialistas consultados são divergentes. 

Segundo o Dr Behrens, não há um consenso sobre isso. Para ele, as três ondas continuam a acontecer.

“O que vemos é um período de mudança, de transição. O acesso a cafés especiais, característica da terceira onda, ainda é restrito e precisa gerar mais oportunidades comerciais. Mas há um crescimento, já está muito maior ao público em geral e menos restrito às elites”, diz.

E está em voga o conceito de que vender mais cafés de qualidade e especiais a um preço mais acessível beneficia toda a cadeia produtiva, do que vender menos a um preço mais alto. Ou seja, essa onda tem a característica de adicionar valor a toda a cadeia , por meio de uma comercialização mais ampla.

Por fim, o professor afirma que o consumo doméstico tradicional dificilmente será substituído pelo consumo fora de casa, pois o café é, nas palavras dele, “uma bebida social degustada, apreciada e compartilhada.”

Já para Ensei Neto, coffee hunter, instrutor de torra, consultor e criador do blog The Coffee Traveler, a quarta onda existe e foi acelerada com a pandemia. “Ter o processo de torra doméstica, além de executar o preparo da bebida, como uma cafeteria, é um modelo que veio para ficar.” E continua: “no caso do consumidor urbano, o acesso a tudo isso tem sido cada vez mais fácil, com maior oferta de equipamentos de todas as tecnologias e preços”. 

Ao contrário, Georgia Franco, coffee hunter e proprietária da Lucca Cafés Especiais, a quarta onda não se trata de torrefações domésticas, mas, sim, como ela mesma menciona, do “coffee making”, em que torrefadores e baristas se aproximam dos produtores para produzir cafés conforme a demanda dos clientes. 

Nesse cenário, pequenos torrefadores ganham espaço e ocupam uma fatia significativa do mercado. Um bom exemplo desse destaque é a compra da torrefadora Blue Bottle Coffee pela Nestlé, em 2017.

A empresária conta que, em evento da Probat, em setembro de 2022, pesquisadores e empresários já estão mencionando a quinta onda! Com torradores a gás sendo substituídos por elétricos com a mesma eficiência, ou ainda utilizando hidrogênio. Além de empresas que já comercializam cafés sintéticos, como a Atomo Coffee.

onda do café

O papel das grandes companhias e das pequenas cafeterias

Esses locais de comercialização de café representam um importante ponto de união entre produtor e consumidor. São inclusive locais onde se aproxima o consumidor de conceitos relacionados à cultura do café. 

Sobre o papel de cada um desses locais, o professor Behrens comenta que “as grandes empresas têm uma função de gerar experiência. As pessoas vão a uma loja da Starbucks, por exemplo, para tomar um bom café, comer um snack e apreciar um tempo no local. Um local confortável onde se pode inclusive trabalhar ou encontrar meus amigos”. 

“Alguns consumidores nem sequer tomam café em casa, mas quando vão a um coffee shop querem sentir a experiência de tomar um bom café, com grãos de qualidade, bebidas diversificadas, ver o barista trabalhando no preparo, comer algo para acompanhar e ter como pano de fundo um ambiente bacana.”

terceira onda

Para ele, no entanto, há uma grande diferença entre as gigantes e as cafeterias independentes. “As primeiras têm um ar ‘institucional’, enquanto as independentes vão para o artesanal, a ‘arte’ do café, e, portanto, criam um contexto diferente de consumo.”

Segundo Ensei, “as cafeterias são excelentes espaços para a difusão da cultura do café e devem, sim, prestar o importante serviço de apresentar produtores e seus cafés, pois os rituais ali encontrados serão, muito provavelmente, replicados em casa”.

Para ele, da mesma maneira quando temos uma boa experiência num restaurante e buscamos replicar o prato em casa, assim, também, é com o café.

E finaliza, “o consumo em casa não irá tirar a importância das cafeterias, mas, sim, elevar sua responsabilidade em compartilhar conteúdos e experiências de alta qualidade”.

home barista

Embora o setor cafeeiro tenha passado por um conjunto de sucessivas “ondas”, cada uma ampliando e aprofundando a qualidade do café disponível, isso só foi possível pela disposição dos consumidores e de toda a cadeia produtiva em se envolver com o café, ajustando seus custos e expectativas para acolher novas propostas que redefiniram as formas como os apreciadores bebem e pensam sobre o café.

Créditos: Petr Sevcovic (cafeteria/destaque); Pham Hien Triet (café coado e filtro cônico); Nathan Dumlao (latas e livros); Clem Onojeghuo (moedor de ferro antigo); Lala Azizli (bebida da Starbucks); Max Whitehead (chaleira Fellows); Matt Hoffman (ambiente cafeteria terceira onda); Lacey Williams (globinhos na Starbucks Reserve); Super Snapper (cantinho do café moderno).

PDG Brasil

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