Boas práticas para torrar cafés canéforas finos
Um dos maiores impedimentos à propagação e valorização dos canéforas de especialidade é a falta de conhecimento de que não se deve avaliar a bebida partindo da expectativa dos descritores de aroma de sabor do café arábica.
Assim como as castas de uvas produzem vinhos diferentes, o mesmo acontece com o canéfora e o arábica. Não cabe um julgamento comparativo quanto à qualidade, mas sim o entendimento de que as duas espécies possuem rodas sensoriais diferentes.
Quando um degustador treinado em canéforas faz a prova da xícara se busca a presença de características sensoriais intensas e presentes, e uma variação sensorial complexa.
O PDG Brasil conversou com três especialistas em torra de canéforas para criar um guia de boas práticas e também encorajar o mercado a abraçar o trabalho de excelência de muitos produtores de canéforas finos brasileiros.
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Características dos canéforas finos
“Entre os grãos de arábicas e canéforas existe muito mais similaridade de sabores e aromas do que diferenças, sendo a mais evidente e distinguível o decorrente do maior teor de cafeína. O tabu de que grãos de canéforas são pobres em sabores em relação aos arábicas é muito mais devido a processos de pós-colheita mal conduzidos do que o potencial sensorial que possuem”, acredita Ensei Neto, especialista em torra de canéforas, e criador dos projetos The Coffee Traveler e Ensei Neto Educação.
“Como torrador tenho que considerar que os canéforas possuem metade dos açúcares do arábica e menos ácidos, e a estrutura é muito mais rígida, o que demanda cuidados específicos quanto ao perfil de torra para que se preserve a doçura e a acidez adequadamente”, explica Matthew Roebuck, torrador especializado em canéforas, que trabalha com perfis de torra de robustas finos em Hamburgo e Lisboa.
“A principal diferença entre arábicas e canéforas está em suas composições químicas, principalmente em relação ao teor de carboidratos, que define, podemos dizer, a quantidade de energia que cada grão possui em potencial. Como os grãos de canéforas apresentam maior teor de carboidratos, seu desempenho de processo, desde que a torra seja bem conduzida, é superior ao dos arábicas”, diz Ensei.
“O ponto mais relevante na torra dos canéforas é levar em consideração o fato de que há menor teor de açúcares simples disponíveis em comparação aos grãos de arábica, de forma que a modulação de energia tem de ser mais criteriosa e controlada”, diz ele.

Canéforas explicados
Segundo a OIC (Organização Internacional do Café), aproximadamente 35% da produção mundial de café é de canéforas (robusta e conilon).
O conhecimento específico sobre as particularidades das plantas de canéfora quanto ao potencial tanto gustativo quanto de cultivo ainda é inexpressivo no Brasil e no mundo, em comparação com a arábica.
O fator principal é o fato de que o cultivo da espécie é muito mais recente, iniciado no século 19, quase 300 anos depois de a arábica ser levada a outros continentes a partir da África, quando as plantas de arábica deixaram o continente.
O próprio termo “canéfora” é pouco conhecido – e usado – até mesmo em segmentos de negócio do mercado de café. Robusta é o “nome fantasia” – termo de mercado – da espécie canéfora internacionalmente. No Brasil, o “nome fantasia” é conilon, sendo que ambos se tratam de variedades da espécie canéfora. Mas qual o motivo dessa desinformação ao longo da história?

Robusta e conilon
A variedade Conilon é originária da região da Guiné, encontrada originalmente em proximidade ao rio Kouilou. Um erro de grafia converteu “Kouilou” em “Konilon”, e mais tarde “conilon”.
O Conilon têm plantas menores, estrutura mais compacta, frutos pequenos, tolerância maior à seca e menor resistência às pragas e doenças. Quanto ao potencial de bebida, em relação à robusta, possui maior teor de fenóis e cafeína, o que aumenta a chance de amargor.
Já a variedade robusta é originária do Congo, e em contraste com o conilon, tem folhas, ramos e frutos maiores, maior porte arbustivo, menor tolerância à seca, maior resistência a pragas (principalmente à ferrugem).
A partir de 1980, a terminologia “robusta” passou a ser adotada internacionalmente pela OIC. Os estados do Espírito Santo, Bahia e, recentemente, a região amazônica são os maiores produtores de canéforas no Brasil, e ainda utilizam o termo conilon apesar do fato de terem uma variedade robusta e muitos híbridos plantados.
No Brasil, tanto o robusta quanto o conilon e suas cultivares derivadas são plantadas juntas, para que a produtividade seja maior e mais frequente quanto à colheita na fase do amadurecimento das fruta, além de potencializar a qualidade quanto à mistura genética, já que as canéforas se reproduzem em sistema cruzado.

Perfil botânico
Comparada às plantas arábicas, a canéfora geralmente é mais resistente e produtiva como cultura, e produz frutos mais uniformes, com um teor de cafeína mais alto – por volta de o dobro – da arábica. As condições ideais de plantio para os canéforas demanda temperaturas medianas a altas próprias de climas tropicais, e elas prosperam em altitudes baixas que vão até 700 metros, em média.
Estrutura do grão de canéfora: particularidades da torra
As diferenças entre café canéfora e arábica mais proeminentes na torra são: níveis mais altos de ácido clorogênico, menos sucrose (açúcar aberto) e mais polysaccharides (cadeias complexas de açúcares).
Matthew explica que é devido a esses fatores o tempo maior de torra indicado para canéforas, pois “caramelizar” mais os grãos aumenta a doçura e melhora o corpo no resultado final, pois assim se reduz a acidez, se quebram as partículas de ácido clorogênico e as cadeias de polysaccharides. “Robustas precisam de mais tempo, mais temperatura e menos ROR (rate of rise/dinâmica).”
“A estrutura celular do grão canéfora é mais rígida, portanto ele se comporta como um grão de alta densidade, o que pode dificultar a saída da água na fase inicial da torra (desidratação) e também tornar a expansão mais difícil”, explica Lucas Venturim, produtor da Fazenda Venturim, no Espírito Santo, que só trabalha com conilon e robustas finos, processados de várias maneiras.
Por outro lado, ele acredita que o fato de a saída da água gerar maior pressão no interior do grão antes do crack catalisa a formação de outros compostos aromáticos.

Torra de canéforas finos: cor e sabor
Além da temperatura e do tempo ideais para torrar canéforas, é importante que haja uma maior condução nos estados tardios da torra, depois do primeiro crack – o que é para a caramelização, corpo e menor acidez.
“A dinâmica de temperatura pode ser de 2/3° C a cada 30 segundos. A canéfora pede uma torra mais escura que a arábica, mas na minha opinião não é bom torrar até o segundo crack, idealmente chegando só até o limite desse ponto. Tempos da torre podem ser de 16 a 18 min, explica Matt.
Quanto à paleta de sabores, a variação depende das particularidades do terroir e dos processos aplicados no pós-colheita. Lucas diz que os sabores dos cafés podem ser clássicos, como chocolate, caramelo e avelã, ou especiarias, frutados e florais – “o céu é o limite”.
Matt conta que já encontrou aromas e gostos de chocolate, rapadura, cana de açúcar, banana ao forno, caramelo, doce de leite, madeira doce, tabaco, nozes, pão, pipoca…
Quanto à extração, quando se aplicam torras mais brandas, a extração deve ser semelhante ao arábica. “Já em torras médias para cima, deve-se ajustar a receita, pois nesse grau de desenvolvimento os canéforas entregam muito mais solubilidade”, explica Lucas.
Importante: usar como receita-base a mesma proporção para a extração de espresso gera superextração.

As boas práticas para torrar cafés canéforas finos segundo os especialistas
Foco na química
“Primeiramente, leve em consideração a composição química média. O processo de torra sempre segue um rito que não deve ser alterado para se alcançar os melhores resultados tanto no rendimento de processo quanto ao resultado sensorial, a começar pela desidratação, seguida de uma excelente caramelização, a partir do alto teor de carboidratos. O resultado será impecável.” – Ensei Neto.
Não queime a largada
“Muita gente acha que tem que começar com temperatura mais alta… eu não faço isso. É bem verdade que a torra como um todo pode demandar mais energia, até pra ter essa expansão suficiente, mas a aplicação deve ser gradual. Se começa com muita temperatura, corre-se um grande risco de terminar a torra com os grãos queimados por fora, e subdesenvolvidos por dentro (o que é o pior cenário possível).” – Lucas Venturim
Explore sem medo
“O produto final pode variar muito em decorrência da torra a partir de um mesmo café. Não tenha medo de explorar os limites do seu café. Erre pra menos, erre pra mais, pra você conhecer as bordas, depois vá ajustando o perfil, para lapidar e otimizar. Mas não tenha medo de errar, especialmente pra mais. Você vai ver que muita coisa interessante pode estar além das suas práticas do dia-a-dia.” – Lucas Venturim
Torra e ambiente
“A torra do café em geral pode ser influenciada mais ou menos por condições ambientais apenas em razão do tamanho do equipamento, devido à chamada ‘inércia térmica’, que é a soma do potencial de energia do conjunto. Portanto, quanto maior o equipamento, mais estável é, a não ser que o equipamento tenha arquitetura de alto desempenho, com base nos sistemas de troca de energia mais eficientes.” – Ensei Neto
Torra e maquinário
“Torra em equipamento de pequeno porte (até 60 kg) é sempre muito sensível às condições ambientais (clima), exigindo maior atenção do mestre de torra às respostas do equipamento” – Ensei Neto

Lucas diz que nunca conseguiu encontrar uma “fórmula única” de torra para as canéforas. “Acho isso fascinante na torra, ser um universo infinito e quase inexplorado. Gosto de percorrer o máximo de alternativas, e algumas vezes até mesmo combinar resultados em um ‘blend de torras’”.
Portanto, explorar e descobrir caminhos é essencial para saborear com justiça as canéforas de alta qualidade.
Crédito: Embrapa Café, Divulgação Fazenda Venturim; Unsplash.
PDG Brasil
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