Por dentro da torra de cafés naturais
O café como conhecemos e consumimos todos os dias, item e ritual obrigatório no checklist do “ser brasileiro”, esconde por trás da rotina diária sua complexidade, trabalho e estudos que um profissional da área precisa ter.
A cadeia está ligada de ponta a ponta. Por isso, saber o que foi feito para dentro da porteira, afeta e influencia o que acontece fora dela. O processo que o café leva, podendo ser natural, cereja descascada, honey ou outros, faz com que os seus aspectos físicos e sensoriais mudem e o trabalho do profissional muda junto.
Entender o produto com o qual se está trabalhando faz com que o melhor resultado surja, isso proporciona uma bebida excelente que valoriza o trabalho do produtor e leva bons cafés à mesa dos consumidores.
Para explicar melhor sobre esse trabalho de pesquisa, estudo e muitos testes, o PDG Brasil chamou dois mestres de torra para explicar o processo natural por dentro da torrefação.
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O que é um café natural?
Antes que surjam dúvidas, na linguagem do café, quando falamos “café natural” não estamos nos referindo à procedência e sim ao processo de pós-colheita pelo qual aquele grão passou. O processo natural tem como característica a seca com polpa e a casca juntos.
Os produtores podem optar por essa seca por diversos motivos. Entre os mais importantes, estão a maior praticidade e o menor custo operacional, pois não precisará de maquinário para retirar a casca do café.
Outro fator que impacta na escolha das cafeicultoras e dos cafeicultores é a preferência pelos resultados de bebida, que, quando o pós-colheita é pelo método natural, é mais presente na boca e tem histórico de apresentar bebidas complexas excelentes.
O processo é o mais utilizado no Brasil e, por conta desses benefícios, não tem previsão para perder esse posto.
Por ser utilizado por tanto tempo, o processo evolui a cada ano, sendo pauta de testes e estudos para melhorar o pós-colheita e trazer maior qualidade para a bebida. Sejam as técnicas de manejo ou a fermentação, os produtores possuem diversos métodos que atendem sua realidade e região em que se encontram.
Porém, o que de fato muda tanto para criarmos preferências culturais pelos processos?
Fernando Bakker Isaias é mestre de torras e sócio do Civitá Café, com formação em biologia. Ele nos dá sua opinião sobre a ideia que fazem sobre a diferença entre natural e cereja descascado: “Os cafés naturais têm fama de entregarem maior doçura e corpo, além de finalização mais longa. Na prática não concordamos com isso. Talvez esse seja um raciocínio antigo, que já está defasado. Cafés lavados ou CD podem ser tão doces e encorpados, ou até mesmo superarem estes atributos em relação aos naturais.”
Para ele, o manejo adequado no período de secagem, a matéria-prima (matriz) e a região (terroir) podem ter influência mais decisiva na composição sensorial. “Ou pelo menos, terão tanta importância quanto essa fase do pós-colheita (seca). No entanto, é muito comum que cafés naturais apresentem notas frutadas e muito doces e isso possivelmente tem a ver com os processos fermentativos que o calor e o alto teor de sacarose disparam durante a secagem”, explica

Fora da porteira
Além de possuir muitos aspectos que o diferenciam nos dois extremos da cadeia do café, o profissional responsável pela transformação que une as duas pontas também precisa conhecer bem o seu material de trabalho.
Devido às suas diferenças do pós-colheita que afetam a densidade do grão, o mestre de torras terá que trabalhar e estudar a melhor maneira de trabalhar o café.
Para Thais Reis Cardoso, proprietária e mestre de torra da Artemis Torrefação, formada em Arquitetura e Urbanismo, cafés com o processo natural se destacam nesses três pontos cruciais dentro do estudo de torra:
- Suporta mais o calor;
- Responde bem às mudanças de fluxo de ar e chama;
- Desenvolve bem a ROR.
A mestre de torras completa falando que, em se tratando dos aspectos sensoriais, aqueles que mais destacam diferença sensorial dentro das suas percepções de provas para avaliar a torra dos lotes são o corpo e a doçura que geralmente se destacam mais para cafés naturais.
Fernando conta que costuma utilizar torras mais extensas e com taxa de ROR mais baixa para cafés naturais aqui na torrefação. “Não é uma ciência exata. Há uma gigantesca diferença entre naturais de variedades diferentes, mas principalmente de terroirs diferentes. Mas, de modo geral, os naturais precisam de atenção na condução do calor para que a torra não carbonize compostos importantes.”
No mundo existem preferências culturais por cafés com determinado processo de pós-colheita, no Brasil, mesmo sem sabermos estamos acostumados a tomar cafés naturais, mas, para o público dos Estados Unidos, há uma preferência por cafés cereja descascada.
Podemos sentir isso até mesmo em padrões solicitados por grandes marcas como a illy que tem preferência por cafés lavados.
Na torrefação do Civitá, os naturais são os queridinhos. “Gostamos de torrar os naturais. Temos bastante intimidade com esse tipo de café. De modo geral, são cafés mais aceitos pelas características citadas, como doçura frutada e retrogosto doce e intenso. Mas a operação de torra de cafés naturais geralmente é mais longa, requer mais atenção e, consequentemente, é mais cansativa”, diz Fernando.

8 dicas para torrar cafés naturais
Um bom mestre de torras deve saber torrar diversos tipos de café, realizando estudos, testes e provas para conseguir atingir o melhor resultado possível dentro da xícara para uma experiência e valorização do café.
Para quem está iniciando, pedimos que os nossos entrevistados separassem uma lista de dicas que podem ajudar ao torrar cafés naturais:
- Cuidado com RoR. Evite picos muito elevados;
- As torras de naturais são sensivelmente mais longas em relação aos descascados;
- Atenção máxima ao crack, cafés naturais tendem a perder energia nesse momento com muita facilidade;
- Cuidado com o estoque, esse tipo de processo deixa o café mais vulnerável a oscilações de temperatura, e os cafés acabam envelhecendo com mais rapidez;
- Mantenha padrão (replicabilidade) das suas torras e prove sempre. Somente assim a detecção de qualquer sinal de envelhecimento ou mudança de sabor serão percebidas;
- Priorize uma seca longa até o ponto de yellow;
- A temperatura inicial pode ser um pouco mais elevada que a dos lavados, não perca a calma;
- Procure desenvolver bem o Maillard e valorizar a doçura acentuada do café natural.
Fernando faz um alerta mais geral: o processo de torra influencia na ascensão e na queda do ponto ótimo do café. “Cafés com torra mais escura, onde temperaturas finais ou tempo de exposição ao calor do torrador foram longas, tendem atingir seu auge mais rapidamente. Cafés com torras mais brandas tendem a ter seu auge por períodos mais longos, pois têm suas estruturas moleculares mais protegidas. A porosidade tende a ser menor e, portanto, os compostos aromáticos ficam mais preservados.”

A importância do descanso
É importante lembrarmos que os cafés, quando passam pelo processo de torra, acabam liberando o gás carbônico que está em suas moléculas. Isso leva o grão a expandir e dar a potência na xícara de espresso, mas, se não for descansado corretamente e estiver com muito gás quando formos beber, a real potência da torra vai ficar mascarada.
O descanso do café deve ser estudado de lote para lote, Depende muito de vários processos e condições geográficas nas quais o café se encontra. Pelo terroir e processo de pós-colheita, podemos idealizar um tempo de descanso, mas, para realmente definir o período ideal, é preciso levar em conta vários fatores.
“Vamos considerar que os cafés naturais são mais porosos mesmo crus e que, após torrados, essa característica é obviamente potencializada. Nesse sentido é possível concluir que sua disponibilidade para oxidar seus compostos aromáticos é maior. Fugimos de oxidação. Queremos trazer para a operação da cafeteria café servido em seu auge de sabor. Menos tempo de descanso é a regra por aqui, ainda que isso possa ter variação dependendo do café”, explica Fernando.
Questionada sobre os cuidados com o descanso de seus cafés, Thais fala que geralmente os cafés naturais tendem a chegar no seu auge dentro dos sete dias de descanso, mas lembra que usa esse parâmetro para cafés naturais e que podem mudar por inúmeros fatores, tanto do processo de pós-colheita quanto em processo de torra. Fazer testes e acompanhar o café é importante para sabermos quando o café está no pico de seu potencial.

O mundo do café é vasto, cheio de detalhes que podem mudar por completo como ele vai se apresentar no final. Estudar ao máximo e manter o trabalho de qualidade realizado desde a muda até a xícara é algo necessário para um respeito dentro da indústria e crescimento do café como um coletivo.
Créditos: Divulgação Civitá Café; Divulgação Artemis Torrefação; Sítio Matinha/Edimar Miranda (terreiro suspenso com grãos em secagem natural).
PDG Brasil
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