Por que produtores e produtoras devem provar seus cafés?
No momento em que você lê este texto se passaram 3 meses desde que fui incumbida dessa pauta pela Giuliana Bastos, a quem agradeço muito a oportunidade e paciência.
Como não sou escritora ou jornalista, questionei muito minhas capacidades para conseguir desenvolver este tema. Assim como, imagino, muitos produtores e produtoras não se sentem habilitados para provar seus cafés porque pensam que é necessário uma habilidade inata. Pois digo, não é.
Imagine um barista iniciante, lutando para ajustar um espresso ou café coado na cafeteria. Nos seus primeiros dias, ele vai aprender a diferenciar um café bem extraído e a dar adjetivos para seus cafés. O barista aprende a provar nos primeiros dias.
Ao produtor que se pergunta por onde começar, recomendo um início na sua própria cozinha provando o café feito por você, mas torrado por alguém de confiança que torrou gentilmente os grãos. Feito isso, o treino pode acontecer diariamente, observando calmamente, gole a gole, e tentando reconhecer a doçura, a intensidade da acidez e o que mais o café estiver falando.
O próximo passo é buscar capacitação e boas referências entre outros produtores e profissionais mais experientes para se inspirar. Neste texto – que saiu como um café espremido no descascador – tive a generosa colaboração de alguns deles que estão compartilhando xícaras e conhecimento com o PDG Brasil e construindo um caminho admirável a partir da mesa de cupping.
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Da porteira para fora
Como país produtor, o cenário dos escritórios de comercialização em geral sempre cumpriu um papel central no destino dos cafés, na avaliação da qualidade e na definição do preço. A preocupação do produtor era somente produzir, delegando aos intermediários os rituais para a comercialização.
Bom salientar que a fruta ou semente processada não dá indicadores precisos de qualidade a olhos nus. Ela precisa ser beneficiada, torrada em um determinado padrão e provada com método. Esse conjunto de etapas, que exigem equipamentos e habilidades específicas, revela o trabalho feito pelo produtor.
Com uma cultura exportadora, foi natural que a prova dos cafés se estabelecesse o mais próximo possível dos portos e cidades estratégicas para o comércio do grão.
Esse distanciamento da propriedade talvez tenha criado também um distanciamento entre o produtor e o produto. O feedback sobre a qualidade do café acontecia de forma pouco detalhada, resumida apenas aos adjetivos vagos “bebida boa”, “café bom”; e ou utilizando os termos da classificação COB: “mole”, “duro”…
Talvez essa linguagem tenha ajudado pouco o produtor a evoluir, e também dado a impressão de que a análise está desconectada das decisões tomadas na produção.

Quando a prova se tornou importante
O embrião de uma mudança de linguagem e na comunicação da qualidade de cafés começou com a norueguesa radicada em São Francisco, Califórnia, Erna Knutsen. Erna era funcionária numa empresa de exportação quando passou a notar que passavam muitos cafés de qualidade excepcional pela mesa de cupping.
Foi ela quem cunhou o termo cafés especiais e, quase 20 anos depois, com a formação da SCA (Associação de Cafés Especiais), a prova de café ganhou uma metodologia, por meio da qual quantificamos, qualificamos e comunicamos para toda a cadeia a qualidade de um determinado lote.
Profissionais dessa etapa da cadeia responsável pela venda ditaram uma cultura de onde e como provamos esses cafés. Mas, porque culturas estão sempre se movendo e se transformando, o desenvolvimento da cultura dos cafés especiais tem feito um belo caminho de volta, soldando a avaliação a etapas anteriores da produção como ferramenta essencial para quem quer colher bons resultados financeiros, vivenciar a cultura de cafés especiais e perpetuar o seu negócio cafeeiro.
Café especial exige que cada etapa seja feita com propósito, dessa forma só se pode corrigir um problema ou aprimorar uma técnica provando-o, só assim é possível identificar o que aconteceu com a semente.
Por exemplo, cafés com adstringência e aspereza no paladar podem indicar uma quantidade maior de frutos verdes do que o aceitável. Identificado isso, o produtor pode tomar uma decisão de seleção desses frutos na etapa de colheita, lavador ou terreiro. Isso impacta diretamente no custo de produção, mas também afeta o valor do café na ponta (possivelmente, tornando-o mais alto). Uma mudança nesse ponto pode definir se o lote será especial ou não, por fim.

Provar o seu café pode envolver a família na produção
Trazer a avaliação do café para perto do produtor e tomar decisões sensatas a partir da mesa de prova é o que está acontecendo no projeto Lado a Lado, da FAF Coffees, em Venda Nova do Imigrante e outras regiões produtoras no Espírito Santo.
Rafael Marques, Q-grader e profissional do café há 22 anos, é o idealizador do projeto que tem visitado produtores na região das montanhas capixabas e também cidades próximas do litoral, serra abaixo, onde a produção de arábica vem ganhando corpo.
O trabalho é um refinamento de um caminho profissional que sempre partiu do princípio de educar e aproximar produtores do seu próprio café. “Os produtores de vinho sabem falar sobre o seu produto”, pontua ele sobre a importância de os produtores de café também dominarem a linguagem dos cafés especiais e saberem comunicar o seu trabalho.
O trabalho de visitas e diálogo começa bem antes da colheita, mas é com o início dela que as visitas se intensificam. Durante esse período, o time do projeto bota a mão na massa com os produtores para dar vida às ideias planejadas anteriormente.
Participam da colheita, fazendo os processos pós-colheita com produtor ou produtora e criando de forma colaborativa diferentes testes, que serão aplicados na próxima safra para produzir um lote certeiro para a comercialização. “É um processo de construir o perfil sensorial com o produtor.”
“Gera inclusão, e os produtores se sentem parte do universo do café especial, se sentem um elemento fundamental e não só uma figura para o marketing.”
O projeto toca numa parte importante do fazer e por que fazer café especial, o sentimento de pertencimento. Mostra ao produtor que, provando seu próprio café, seja no laboratório móvel ou passando a beber seu melhor café no dia a dia, o trabalho oferece perspectivas para toda a família.
Para Rafael o maior impacto está na sucessão familiar. Toda a família, sobretudo os filhos passam a ver no café um futuro promissor. Com os resultados financeiros positivos que o projeto tem retornado aos produtores, alguns filhos têm reavaliado mudar os estudos para cursos que ofereçam mais capacitação para o negócio familiar.

A prova como ferramenta para rastrear qualidade e fidelizar clientes
Uma sala de prova na fazenda ou uma pequena estrutura, com água quente filtrada, torrador de prova e moedor, podem ajudar o produtor a oferecer uma experiência completa, da semente à xícara, para os seus compradores. Garante transparência e fomenta a troca de conhecimento, além de assegurar também uma negociação mais satisfatória para ambas as partes.
Para os produtores da Fazenda Recanto, Maria Selma e Afrânio Paiva, esse trabalho começou há mais de três décadas, quando começaram a reorientar a produção, mirando um futuro mais sustentável para a propriedade.
Antes de ter estrutura e um profissional na fazenda para provar os cafés, o produtor já separava os lotes com atenção para a qualidade na seca e no armazenamento.
Um caminho natural de evolução foi investir em conhecimento e estrutura para avaliar os lotes dentro da fazenda. Quem intensificou esse trabalho foi a filha do casal, Paula Magalhães, que há sete anos comanda o laboratório e a torrefação instalados num galpão reformado da Fazenda Recanto.
Provar todos os cafés in loco ajudou a família a rastrear melhor a qualidade dos lotes, talhão a talhão, acompanhar a entrada desses no lavador e tomar a decisão pelo melhor método de processamento. Se o ideal seria fazer um natural, ou melhor descascar e otimizar o terreiro ou investir em métodos de fermentação como o lavado ou honeys… Essas escolhas só são possíveis após serem validadas na mesa de cupping.
“Se tenho tenho habilidade de provar, se consigo provar outros cafés e o meu, posso entender como encaixar melhor o meu café no mercado”, diz Paula.
Hoje a família possui muita experiência em métodos de pós-colheita e produz uma variedade consistente de perfis sensoriais, que entregam muita limpeza e doçura no paladar. O trabalho tem ganhado clientes finais do café, assim como torrefadores fiéis no mercado interno e externo.
A dedicação a essa etapa do processo, fortalece a relação com compradores criando lotes que entregam exatamente o perfil sensorial desejado por eles, assim como oferece a oportunidade de direcionar outros lotes que serão torrados na fazenda.
Esse trabalho consolida a qualidade dos cafés e fortalece a identidade da Recanto para um público especializado e também para novos bebedores de café que se aproximam da marca. E é fundamental para gerar sustentabilidade financeira e dar segurança para investir em outras áreas do negócio.

O potencial financeiro e onde iniciar a sua capacitação
Uma preocupação deste artigo era de oferecer informação e dados úteis que confirmassem as vantagens de se aprender a provar o seu próprio café. Procurando por fontes embasadas em pesquisa, encontrei pouco material a respeito.
Porque o mercado de café especial ainda interdepende de indicadores do mercado de commodities, valores pagos pela qualidade dependem muito das empresas e da natureza das negociações, que podem premiar por saca ou oferecer segurança para compras futuras.
Mas, com a expansão do mercado de cafés, que em 2020 teve alta de 50% em relação ao ano anterior, segundo a BSCA (Associação Brasileira de Cafés Especiais), a avaliação do café não se torna só um processo importante para validar as características sensoriais de um café especial, mas também é ferramenta essencial para avaliar as características do volume de café commodity produzido e como vendê-lo da melhor forma possível.
No Planalto Baiano o Projeto Colheita das Alegrias está dando seus primeiros passos na construção de um mercado que entenda a qualidade dos cafés produzidos por produtores vizinhos à Fazenda Alegria, em Vitória da Conquista, lugar que sedia um laboratório e torrefação para reuniões e provas coletivas para os produtores.
O projeto tem feito um trabalho de base, provando e oferecendo aos produtores treinamento para avaliar os seus cafés. Para Vinicius Lima, Q-grader e filho de produtor em Barra do Choça, os produtores da região estavam desassistidos de atendimento técnico para se capacitar, e sempre dependeram muito de empresas e armazéns para ter um retorno sobre a qualidade. Algo que nem sempre chega: “o feedback de quem está provando se perde dentro do armazém”.
Para ele, o trabalho tem foco na educação dos produtores e em oferecer suporte para melhoria dos processos porteira adentro. Além disso, auxilia os produtores a não confiar apenas na intuição para fazer mudanças em direção à qualidade.
O projeto, que atende hoje 12 produtores, tem no horizonte criar uma linha de cafés para adquirir alguns desses café e dar melhor oportunidade de venda. Entender bem do próprio café pode levar naturalmente o produtor a torrar seu café e apostar numa marca própria. A torra é o próximo passo possível a partir do momento que o produtor passar a avaliar e entender sua produção. E oportuniza um ganho maior com lotes que no mercado comum não receberiam um bom diferencial.

No volante
Vinicius enxerga que o produtor que passa a provar seus cafés passa a entender que existem muitos caminhos possíveis dentro da cadeia produtiva para explorar, como torrar o próprio café ou abrir uma cafeteria, por exemplo. Sua dica para quem está começando é “guarde o seu melhor café para você mesmo”, diz ele, relembrando quando começou a torrar os cafés produzidos pelo pai no torrador bolinha de forma bem rústica.
“O produtor que prova o café sai do banco de carona e vai pro volante.”
A prova é um norte para a melhoria da qualidade e afeta diretamente o preço pago pela saca, quando o produtor passa a entender como separar os lotes de forma estratégica: separando lotes com potencial para bebida especial de outros volumes para o mercado de commodities.
Dessa maneira, chegam a vender cada saca com um diferencial que vai de R$ 100 a R$ 150 de início, e, se atingindo uma qualidade ainda superior, esse ganho pode ser maior. É o que relataram os entrevistados até aqui, Paula, Rafael e Vinicius. Demonstrando que existe sim uma consistência no retorno que premia produtores interessados em dominar o seu café a partir da avaliação.
Cursos como o do Sistema FAEMG são a porta de entrada para produtores que desejam se capacitar para classificar e degustar seus cafés. A especialista em café e instrutora do sistema Helga Andrade, começou sua trajetória no Sistema com esses cursos, que foi o primeiro curso do sistema voltado para a qualidade sensorial da bebida que em 2014. Ela participou da elaboração da cartilha, que conta com instruções sobre como pesar e classificar o café até detalhes sobre como e por que alguns defeitos ocorrem.
Nos cursos presenciais, a troca de experiência entre os participantes ajuda a criar uma rede de apoio para o produtor e para Helga “a troca de experiência encurta o caminho”. Para produtores no estado de Minas Gerais, que buscam pelos cursos do Senar, basta demonstrar interesse. Os cursos acontecem a partir da procura pelas turmas, eles são gratuitos e estão disponíveis neste link.
Perguntamos a Helga, qual o maior impacto quando o produtor se capacita. Para ela, a prova leva o produtor a olhar para o pós-colheita. “Podendo melhorar essa etapa é possível produzir qualidade pensando no mercado que se quer alcançar.” A partir daí, pontua, o produtor começa a visualizar possibilidades de negócio: “o matchmaking (com o comprador) acontece mais quando você conhece o café que tem, do que só ficar numa busca incansável pela qualidade que você não consegue replicar”.
“A prova possibilita entender o mercado e entender o que você faz, e, se você faz bem, investir nisso.”

Para encerrar, na conversa com todos os entrevistados, é uníssono que aprender a provar o seu café aproxima o produtor da língua dos cafés de qualidade e dessa forma o faz pertencer a esse universo, criando oportunidades e dando protagonismo ao cafeicultor e à cafeicultora.
Então, ao produtor que aproveitou esse texto desejo que se aproprie do seu café com uma xícara e uma colher em mãos, sabendo que um mundo pode se abrir a partir delas.
Além disso, os produtores podem auxiliar outros produtores vizinhos, oferecendo suporte para avaliar e tangibilizar qual a melhor maneira de colocar o café no mercado, se potencialmente um microlote ou posicionar o café num concurso de qualidade ou aproveitá-lo numa liga. A prova é uma etapa importante para nortear o destino café.
O impacto pode ser financeiramente mensurável quando se agrega um valor maior de venda por saca, ou quando se ganha o conhecimento de consistência do lote em questão representar uma mudança na secagem, podendo diminuir custos e aumentando o volume de café com perfil de commoditie.
Produtores que conhecem bem seu próprio produto ganham segurança para falar sobre ele, e logo isso representa um impacto no valor da propriedade e da sua marca em caso de produtores que escolhem torrar seus próprios cafés.
Créditos: Acervo Rafael Marques (equipe projeto colhendo café com produtor, produtores recebendo o laboratório móvel do projeto Lado a Lado); Acervo Fazenda Recanto (produtora avaliando cafés/destaque, torrefação da fazenda, laboratório da fazenda); Acervo Colheita das Alegrias (produtores em treinamento de torra, produtores provando seus cafés no projeto); Acervo Helga Andrade (instrutora avaliando os cafés, mesa de cupping).
PDG Brasil
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