Cafeomancia e tatuagem: quando o café une tradição e arte
O público do café especial e o público da tatuagem têm uma sobreposição considerável: não é incomum ou surpreendente ver um barista, um frequentador de cafeterias com algum tipo de marca no corpo. Os amantes mais assíduos escolhem ainda imagens relacionadas à bebida, como ramos de pé de café, métodos, estrutura química da cafeína, entre outros.
A borra, os restos, não são algo que surge com frequência no imaginário coletivo na representação visual do café. Assim como outros restos e subprodutos, ela é desprezada, apesar de seu potencial. Pela internet podemos achar receitas de compostagem, inseticidas e esfoliantes caseiros; usos práticos e interessantes do ponto de vista ecológico. O protagonismo em obras de arte, porém, é um uso surpreendente do pó usado.
A relação de uma artista com o café a fez buscar caminhos diferentes dos trilhados até o momento e uma união inédita surgiu: tatuagens de borra. Maria Isabel Dagli Hernandez – nome artístico Mari Dagli – é formada pela UNESP em Artes Visuais.
Seus trabalhos como artista visual e tatuadora abordam temas como decolonialidade, ancestralidade, corpo, heranças genéticas e identidade de gênero. Em suas pesquisas e questionamentos, a borra aparece como foco de um casamento entre tatuagem e tradição de maneira a superar o aspecto puramente decorativo das tatuagens. Siga lendo para conhecer mais sobre a arte que une cafeomancia e tatuagem.
Você também pode gostar de ler Amor cafeinado: conheça a história de casais que dividem a paixão pelo café.

Café e Heranças
Todos sabemos que é impossível medir o peso da herança cultural do café no Brasil. Além do produto ter sido responsável pelo começo da industrialização do país, sua onipresença nos lares cristaliza sua importância no nosso inconsciente coletivo. A experiência da Mari não é muito diferente de muitas outras.
“Eu gosto quando posso tomar um café pra compartilhar uma boa conversa, é o que me faz sentir unida a outra pessoa. O cheiro de café me traz sensação de acolhimento. Quando vim pra Espanha, notei como a experiência com café no Brasil é muito mais íntima, de degustar o sabor do café sem leite nem nada.”
De fato, os brasileiros têm uma relação única com a bebida. Enquanto em outros países cafeterias são lugares austeros de estudo e trabalho, o cafezinho brasileiro e seu caráter social são inseparáveis; servido no café da manhã ou depois do almoço, para família, amigos, conhecidos ou estranhos, ele transpõe o papel de bebida gostosa e estimulante e vira o símbolo da simpatia e acolhimento nacional.
A presença de outras culturas no nosso dia-a-dia, porém, faz parte de ser brasileiro. Não são raros os sobrenomes estrangeiros, hábitos alimentares específicos, culturas diferentes, festas que não surgiram no Brasil. Muitas vezes, basta olhar para a própria família ou a próxima. Nossa entrevistada não é uma exceção:
“Minha relação com o café vem de âmbito familiar também, dos domingos na casa da minha avó Vilma e da leitura da borra de café que ela fazia (e ainda faz) pra gente.”
Vinda da Síria, sua avó compartilhou com a família seus hábitos de café. Mari conta que durante a pandemia a frequência de suas visitas à casa de sua avó teve que aumentar e seu interesse pelas heranças culturais vindas dela também cresceu consequentemente. Entre as histórias contadas por Vilma, está a que sua mãe (bisavó de Mari) recebia as amigas em casa toda terça-feira à tarde para beberem café e interpretarem as xícaras umas das outras.

O oriente médio é a região com os registros mais antigos de preparo da bebida, não é surpresa que esse hábito tenha se aliado com outro, de forte presença em todas as culturas: o oráculo, a adivinhação.
Sobre isso, ela conta: “A leitura de borra de café é, basicamente, a interpretação dos símbolos que aparecem na sua borra de café quando você bebe o café árabe – que é um café de pó mais fino cozido de uma maneira específica, com o pó junto, a água e o açúcar”.
Depois de beber o café, você vira a xícara ao contrário sobre o pires e espera o líquido baixar, depois desvira e tem que olhar pros símbolos que se formaram e interpretá-los, tirar imagens dali. “Essas imagens são como oráculos e isso é uma tradição milenar.”

Café e arte
É através de sua relação cultural-familiar que a leitura de borra adentra o processo criativo das tatuagens da artista. Suas explorações anteriores também buscam informações em sua herança cultural, reforçando o laço que Mari tem com a decolonização: ilustrações que envolvem o corpo de descendentes como ela, cujas características não se encaixam no padrão estético brasileiro, muitas vezes inspiradas por fotos enviadas a ela junto de relatos sobre a experiência em crescer com esses traços.
Antes da borra, porém, vieram as pinturas em papel feitas com café, cuja origem curiosa é descrita por ela, “Eu não lembro ao certo quando comecei a olhar o café como arte. Bom, um pouco disso é devido à tatuagem, com certeza. É que os tatuadores costumam usar café para pintar o fundo de suas folhas de flash, para dar um efeito de “antigo”.
Pois há muita valorização do estilo old school e claro, a forma como vemos essas folhas de tatuadores do século passado hoje em dia é como folhas envelhecidas, amarronzadas. Portanto, os tatuadores tentam copiar esse estilo. “E acabou que se formou uma estilização muito interessante dos flashes dos tatuadores nessas folhas. Fica lindo. A partir desse momento, comecei a entender o café como um material possível de ser usado na criação artística”, explica.

Todos os ingredientes para uma ideia já estavam ativas no pensamento da artista para o desenvolvimento de seu projeto de tatuagens de café: reflexões sobre heranças culturais, corpo, tatuagem e o fator social da bebida. O surgimento das tatuagens de borra, porém, aprofunda ainda mais as relações que se estabelecem entre os fatores; o resultado é maior que a soma das partes.
“O café como imagem, como poética, como cheiro, sensações… tudo isso me faz pensar em terra. Eu olho pro café e vejo território, até no sentido colonial da coisa, de como foi um produto usado pelo imperialismo para a obtenção de riquezas. Mas tem algo mais aí, algo de hereditário, ancestral, que, para mim, toda comida guarda. Não sei explicar bem, mas quando penso nele, penso nos desenhos que se formam na cafeomancia como mapas.”
Mari conta que isso traz a ela muita curiosidade. “Faz pensar em como povos antigos consumiam o café, viam esses desenhos e se guiavam por eles para suas trajetórias de vida. Até se formos pensar em constelações, a borra de café também parece estrelas, e fico divagando sobre ancestrais olhando essa borra e interpretando o futuro como se fosse o céu.”

Além das relações da realidade brasileira e da terra, ela fala sobre tempo e corpo:
“Pra mim, o pó tatuado no corpo lembra um pouco manchas, pintas, mas lembra também uma constelação; e eu amo que parece ser algo que nasceu com a pessoa, mas que na verdade é uma modificação do corpo feita de forma intencional. Além disso, todo trabalho que eu tentava fazer com café no papel era perecível, por ele ser matéria orgânica. Transpor isso para a tatuagem foi uma das únicas formas de não fazer essas imagens perecíveis – pelo menos, durável por toda a vida da pessoa que as carrega.”
O encontro de Mari com a pessoa a ser tatuada também se diverge da maneira que outras sessões de tatuagem normalmente acontecem. Cria-se um ambiente de intimidade, como esperado de se tomar um café com alguém no Brasil.
“Eu sirvo o café pra pessoa que vai se tatuar, ela bebe, e eu giro a xícara no pires para baixar o pó. Depois, quando desviro, interpreto os símbolos e faço a leitura pra ela. E aí eu tiro um decalque da xícara com um papel contact (aqueles de encadernar livros), escaneio e edito no computador pra ficar do tamanho que eu quero. Aí só imprimo esse desenho na máquina de decalques de tatuagem e pronto, tatuo.”
“Cada xícara contém a história e a previsão para uma pessoa. Então, o que se escreve ali tem diretamente a ver com ela. É um trabalho bastante relacional, e acho que essa é uma das coisas que mais gosto dele. Além disso, a interpretação não vem só do meu lado; eu gosto de escutar o que a pessoa tem a dizer, falar se aquilo faz sentido pra ela ou não etc.”

O ambiente criado por Mari ao fazer suas tatuagens de borra extrapola uma simples sessão e traz a sensibilidade do cafezinho brasileiro para seus encontros. A junção da cultura de café do país junto de sua herança cultural vinda de uma família imigrante enriquece a definição da tatuagem e da borra juntos.
A utilização de todos os nossos recursos é uma bandeira nobre a ser seguida; o meio-ambiente e sua proteção devem ser uma prioridade no momento, usos criativos do que consideramos “resto” são sempre bem-vindos. As tatuagens de Mari são um registro sensível de uma parte de nosso dia-a-dia sobre a qual não refletimos com muita frequência.
Créditos: Mari Dagli.
PDG Brasil
Quer ler mais artigos como este? Assine a nossa newsletter!