11 de julho de 2022

Desconstruindo o clássico mapa da língua

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Nossa capacidade de detectar diferentes gostos e sabores nos permitiu dar um passo a mais na escala evolutiva ao possibilitar detectar alimentos nutritivos e energéticos ou nos impedir de ingerir algo tóxico.

Provavelmente você já ouviu falar que cada um dos cinco gostos básicos: doce, salgado, ácido, amargo e umami, são percebidos em regiões diferentes da língua – doce na frente, salgado e azedo nas laterais e amargo no fundo.

ERRADO! Toda a superfície da língua é capaz de identificar os cinco gostos, independentemente de sua localização.

Para saber mais, o PDG Brasil conversou com o professor de psicologia experimental da Universidade de Oxford (Reino Unido), Charles Spence, que dentre muitos tópicos, avalia como nossos cérebros conseguem processar as informações de cada um de nossos diferentes sentidos.

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mapa da língua

A origem do mito do mapa da língua

Tudo não passou de um erro de comunicação que perdurou por vários anos. O professor Spence diz que “foi um erro de tradução do texto do alemão David Hänig de 1901”. Na ocasião, Hänig demonstrou que as diferentes regiões da língua são mais ou menos sensíveis a determinados estímulos. Existia alguma variação na forma em que os estímulos eram registrados em toda a região do órgão.

O problema foi que na publicação ele inseriu um gráfico de suas medidas, que mostrava a mudança relativa da sensibilidade (e não especificidade) para cada gosto de um ponto a outro. Isso deu a entender que diferentes partes da língua eram responsáveis por detectar gostos diferentes, em vez de mostrar que algumas regiões eram levemente mais sensíveis a alguns gostos do que a outros.

mapa da língua

A hipótese de que as regiões têm sensibilidades distintas é bem válida já que diferentes partes da língua possuem mais ou menos papilas para perceber certos gostos, mas essas diferenças não restringem a percepção a uma região específica da boca.

Se estivesse correto, poderíamos esperar que o receptor do gosto doce estivesse localizado só na frente da língua, assim como os receptores amargos no fundo. Mas esse não é o caso. Todos os receptores são encontrados em todas as áreas da língua.

gosto

Os cinco gostos básicos

Vale retomarmos aqui o conceito dos cinco gostos básicos para conhecermos um pouco mais cada um deles. 

Salgado

Assim como o gosto ácido, o salgado detecta íons na boca. A detecção do sal orienta a incorporação de minerais pelo organismo.

Ácido

Talvez o mais interessante dentre os cinco gostos, o ácido nos permite reconhecer alimentos de sabores e gostos mais complexos. Se torna muito desagradável quando presente de forma muito intensa. É útil no reconhecimento de frutas “verdes” (imaturas) e alimentos estragados.

Amargo

Inerentemente desagradável, porém suportável quando mais fraco. Cafeína e ácido nicotínico, presentes no café, são exemplos de compostos amargos (assim como os ácidos clorogênicos), assim como muitas drogas (medicamentos). O amargo nos alerta a não ingerir alimentos potencialmente perigosos. Um dos desafios empolgantes na pesquisa do paladar é entender como os receptores amargos foram moldados pela evolução para cumprir essa tarefa.

Doce

Os receptores do doce respondem aos carboidratos solúveis. Tem um potencial de apreciação (hedônico) superior aos demais gostos.

Umami

O caçula dos gostos, descoberto em 1908 pelo cientista japonês Dr. Kikunae Ikeda, porém os receptores do umami na língua só foram determinados em 2002. O termo umami significa “essência da delícia”, em japonês, designa uma sensação de gosto agradável que é qualitativamente diferente do doce, salgado, azedo e amargo. O umami é um gosto presente em alimentos contendo o glutamato. Talvez o exemplo mais famoso do umami seja o glutamato monossódico Ajinomoto®. 

Ao conduzir uma análise sensorial, por vezes é necessário que se faça uma triagem para avaliação da habilidade do provador em reconhecer os gostos básicos. São testados solução de sacarose 1% (doce), ácido cítrico 0,03% (acidez), cloreto de sódio 0,2% (salgado), cafeína 0,03% (amargor).

percepção do gosto na língua

A percepção do gosto

Cada papila tem uma estrutura em camadas, semelhante a uma cebola, classificadas anatomicamente em diferentes tipos (na imagem acima: I, II, III, IV). As do Tipo II respondem aos gostos doce, amargo, umami e possivelmente salgado; Tipo III para ácido. Já as do Tipo I funcionam como suporte e as do Tipo IV atuam como células-tronco que repõem as demais células a cada duas semanas.

A percepção dos gostos começa quando os receptores das papilas gustativas detectam determinados compostos químicos. Cada uma dessas papilas apresenta um ou mais botões gustativos. Essa estrutura ainda apresenta em torno de 100 células que funcionam como receptores gustativos. 

Ao primeiro contato do composto com o receptor, este logo traduz o sinal que chega à célula, e esse sinal é transmitido para a região cerebral conhecida como córtex gustativo. Esse mecanismo (generalizado é claro!) é válido para a percepção de todos os gostos.

Com o avanço da neurociência, conseguimos entender como ocorre a percepção dos gostos em sistemas mais simples, como soluções aquosas de um ou poucos compostos. Porém o professor Spence destaca que os mecanismos de detecção do gosto são muito dinâmicos e complexos, que envolvem não apenas a resposta dos receptores da língua aos componentes do gosto, mas depende do movimento da língua, da experiência de cada indivíduo, da composição da saliva etc.

análise sensorial

O gosto para além da língua

Embora os sentidos do olfato e visão nos auxiliem no reconhecimento dos alimentos, o paladar é o responsável pela percepção dos alimentos que ingerimos – o reconhecimento e a seleção finais dependem dos quimiorreceptores presentes na boca.

Segundo o professor Spence, “todas as áreas da boca que possuem papilas gustativas – incluindo a língua, o palato (céu da boca) e a garganta – podem responder a todos os cinco gostos”. E acrescenta que “nossa experiência do gosto é ‘espacializada’”. Por exemplo, ao ingerir uma bebida adstringente como um vinho tinto jovem, percebemos essa sensação adstringente na parte de trás da língua (mesmo que toda a língua responda a essa sensação). 

Ou seja, independentemente de todos os receptores detectarem os cinco gostos, há um elemento multissensorial na percepção desses gostos, isto é, uma integração entre o paladar e o tato (toque do alimento na boca), por exemplo.

percepção do gosto

Água: insípida, inodora e incolor – Só que não!

Desde a Antiguidade, Aristóteles (350 a.C.) já dizia que a água não tinha sabor, ou seja, é insípida e inodora. Porém, uma pesquisa conduzida na Universidade Estadual de Nova Iorque (EUA) e publicada na revista Nature sugeriu que mamíferos (assim como insetos e anfíbios) têm um receptor na língua responsável pela percepção de um sexto sentido, o gosto da água. 

Ou seja, a água tem gosto (como muitos afirmam), ou é somente o veículo que transporta alguns aromas?

Os autores do estudo demonstraram que o cérebro responde especificamente ao estímulo provocado pela água. Porém há uma discussão em torno do fato de que essa “percepção” seja apenas uma resposta/reação a uma percepção anterior, isto é, após comer algo salgado e logo depois bebermos água, perceberemos uma certa doçura na água (e não da água).

análise sensorial do café

A importância da microbiologia da boca

Quando criança, nós temos uma predileção por alimentos e bebidas doces. Porém, no decorrer da vida, as mudanças nos hábitos ocorrem como resultado da experimentação de outros alimentos, o que explica as diferentes preferências de pessoa para pessoa em diferentes idades.

Além disso, recentemente foi publicado um artigo destacando a importância da microbiota da boca na sensibilidade aos gostos básicos. O que de fato faz muito sentido já que a boca é hospedagem permanente de uma série de microrganismos que, como resultado do seu metabolismo, modula/aumenta a concentração de componentes próximos aos receptores gustativos na boca. 

Por exemplo, foi demonstrado que a percepção do gosto ácido foi reduzida em pessoas com maior quantidade de Lactobacillus, sugerindo que a produção de ácidos por eles causa uma redução à sensibilidade do gosto ácido.

Muitas bactérias da boca podem hidrolisar carboidratos em açúcares mais simples. Foi reportada uma associação entre algumas bactérias a um aumento à sensibilidade ao amargor. Isso porque essas bactérias hidrolisam carboidratos em açúcares simples e, portanto, reduzem o efeito do amargor. Assim como ocorre quando adicionamos açúcar ao café para diminuir seu amargor.

análise sensorial do café

E no café?

Em uma matriz tão complexa e submetida a um processo muito drástico como é a torra, muitos compostos do café se unem para formar aquele sabor e aroma de café torrado inconfundíveis. Porém aqui vão os compostos mais famosos e que gosto eles conferem:

Doçura (natural): Já falamos especificamente da doçura do café aqui. Não é pela presença de açúcares, que são quase que totalmente destruídos na torra, mas sim pela presença de alguns aromas específicos e pela diluição de compostos ácidos e amargos que então evidenciam a doçura natural na bebida.

Acidez: presença de ácidos no café, principalmente cafés submetidos à fermentação que intensificam notas frutadas e florais.

Amargor: principalmente pela presença de cafeína e ácidos clorogênicos.

café análise sensorial

Por fim, o Dr. Spence nos disse que, numa de suas últimas revisões sobre o mapa da língua, ele encontrou “muitas informações envolvendo vinho e cerveja, mas nada diretamente com café”.

Ele diz que deve ser porque o aroma do café é mais apreciado do que seu amargor e, portanto, “desestimula a pesquisa desse tópico”. Talvez esse seja um estímulo para que outros pesquisadores do segmento de análise sensorial do café mergulhem no tema, em busca de mais informações. 

Créditos: Adam Friedlander (Kalita), Andrew Smith (cotonete na boca), Dave Spratt, Fashion Mauritius (água), food52 (frutas e legumes), Alex Guillaume (língua roxa), Icons8 Team (mulher); Justus Menke (grãos de café torrado); Maria Orlova (preparo de café). 

Ilustrações: 1 – O mapa da língua segundo David Hänig (1901). Hänig, David (1901). Zur Psychophysik des Geschmackssinnes. Philosophische Studien 17: 576–623; 2 – montagem com a evolução do mapa da língua. Primeira figura: mapa da língua de acordo com Arie Jan Haagen-Smit, em 1952. Meio: publicada em 1995 por Harvey Schiffman. Última: publicada em 2013 por Pamela Marshall; 3 – Anatomia da língua e seus receptores, por Bijal Trivedi.

PDG Brasil

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