Cuidar de nós, com café bom
Por Eystein Veflingstad, colunista do PDG Brasil
Com a colheita acontecendo em várias regiões, chegou o momento de falar do potencial sensorial dos nossos cafés. Café é uma palavra que provoca algo diferente em cada um de nós, e pode significar a planta, a fruta ou a bebida feita com café torrado e moído.
Café faz parte da nossa cultura e rotina, mas isso não significa que podemos presumir que a nossa relação com o café não tem impacto. Temos como apreciar e temos como guiar essa experiência, pois o café tem um potencial que estamos somente começando a perceber.
A complexidade do café faz com que possamos imitar as características de outros alimentos por meio da torra. Podemos aplicar processos de fermentação na fazenda e processos de torrefação, focando na mesma visão sensorial de por exemplo cítrico alaranjado com complexidade e chocolate sem ir para frutas passas.
Temos alguns pontos críticos na produção, torrefação e extração e temos que alinhar as três etapas para aproveitar melhor e criar algo mais focado e intenso. Não é para caçar notas sensoriais. É para elas aparecerem mesmo e te oferecerem viver um momento significativo por meio dos seus sentidos.
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O potencial sensorial dos nossos cafés inicia-se com a genética. Não tem como escapar do fato de que variedades e clones diferentes têm potencial diferente. Alguns favorecem perfis mais vivos, e outros precisam alcançar complexidade por meio da torrefação para aparecer e agradar.
Todos precisam passar por processos que liberem o potencial deles para dar certo. Temos essa dança entre a genética, a condição geral do ambiente e o nosso acréscimo. Cerejas menos maduras oferecem um perfil herbal/vegetal com acidez de baixa complexidade. Os grãos com ponto de maturação inferior têm desenvolvimento físico menor. Isso significa que aceitam o calor da torra de forma mais lenta, além de oferecer uma complexidade menor.
Essa complexidade é importante porque é um critério do nosso corpo. Se tiver doçura e uma acidez complexa, a leitura do seu corpo é de aceitação e sentimentos positivos. Estamos nos cuidando quando tomamos um café bom.
Cerejas com ponto de maturação propício para torrefação ganham em muitas áreas. Eles se desenvolvem melhor, com mais uniformidade, e estalam no ponto certo para o torrefador ter facilidade de expor o potencial, sem degradar o café em busca da necessidade mínima, a solubilidade.
“Sem fazer uma seleção prévia do que vai fermentar, não haverá controle suficiente para fazer café com propósito.”
Como um café se comporta no processo de torrefação tem tudo a ver com as escolhas feitas durante a colheita e pós-colheita. Quando colhemos café que passou o ponto, temos uma perda de acidez devido ao ponto de colheita e da torra. Um café colhido nessa fase da maturação não tem a mesma tolerância às temperaturas no final de uma torra e são difíceis de finalizar pela degradação.

Sem chegar nas temperaturas que realmente oferecem a melhor transformação, não teremos um corpo aveludado, percepção alta de doçura ou uma acidez definida e complexa. É uma questão de respeitar a tolerância do café, e guiar o potencial dele. O que faz ser difícil é que o limite não fica parado, ele se move com a perda de umidade, que não é nada linear.
Dois conceitos-chave na produção de café são a uniformidade e a limpeza dos processos. Isso tem a ver com o nosso controle, e no final, com o potencial do nosso café torrado. A uniformidade ajuda a controlar melhor os processos físico-químicos das duas etapas finais feitas nas fazendas.
“Estamos nos cuidando quando tomamos um café bom.”
O café fermenta querendo ou não, um ponto importante. Sendo que, se não fermenta, pode mofar. Eu acho que devemos guiar com muito cuidado esse processo para melhor desfrutar da nossa xícara. Uma faixa estreita de maturação, oferece para as leveduras e bactérias um material preparado, que podemos direcionar de uma forma melhor.
Sem fazer uma seleção prévia do que vai fermentar, não haverá controle suficiente para fazer café com propósito. Haverá vários processos em paralelo, com velocidades e necessidades diferentes, e a nossa possibilidade de guiar os processos perde potencial.
Com a colheita em andamento, chegou a última chance de fazer mudanças no nosso jeito e nos nossos processos. Quem tem fazenda conhece bem esse ciclo. Quem tem uma torrefação também deve se envolver nisso por meio dos seus parceiros produtores para acharem um caminho juntos.
Cada um de nós tem algo para acrescentar e cada um sabe da sua necessidade. O que é necessário é uma colaboração, onde cada um faz o seu papel para oferecer um produto com alma, com a meta de oferecer o melhor de nós para os nossos clientes.
A minha experiência mostra que quem trabalha com propósito também trabalha de forma mais leve e alegre, por fazer parte e por ter impacto. Muitos que já fizeram a troca do convencional para especial têm visto e sentido isso.
“O café é um assunto multidisciplinar.”
O que fazer como torrefação nessa época é retrabalhar os nossos cafés envelhecidos da melhor forma possível e definir como queremos trabalhar com a próxima safra.
Não seria legal ter cafés que aguentam melhor o passar do tempo? Como podemos viabilizar isso? Não seria legal sentir orgulho de servir os nossos cafés e não frustração por não conseguir oferecer a qualidade que desejamos?
Por meio de diálogo, torrefadores e produtores podem crescer juntos com cada participante falando de metas e necessidades e buscando soluções. Às vezes, um lado terá uma solução já formada, e às vezes é necessário achar juntos. O importante é abrir a possibilidade de trabalhar em sinergia, com cada um colocando um pouco de si.
A mão humana pode potencializar o café em cada etapa, do solo até a xícara. Dois especialistas, cada um no seu campo, podem ganhar muito nessa troca de conhecimento porque café é um assunto multidisciplinar.
Na próxima coluna o assunto vai além das notas sensoriais, para explorar como o nosso corpo interage com o café torrado e extraído. Quero explorar o fato de o mundo, depois desse tempo todo, realmente ser um mercado emergente em relação ao sabor e aroma.
Uma premissa para alterar isso é estudo e dedicação. De ter a força e o querer para fazer algo melhor e além do comum. De se sustentar melhor por meio do seu trabalho e investimento.
A possibilidade está lá, esperando as pessoas verem e reagirem.

Eu vejo um futuro possível. Você também pode ver se quiser, e ele será seu. O ponto de partida é fazer a leitura do seu próprio corpo, as suas reações encontrando com acidez, doçura, complexidade, adstringência e amargor.
Na minha opinião, toleramos muito mais adstringência do que faz sentido, talvez pelo costume de tomar café adstringente. Quando o básico está estabelecido, sem gostos e aromas que falam de fruta imatura ou degradada, teremos uma base suave e um palco para o sensorial se destacar.
Deixe um comentário nas redes sociais do PDG Brasil ou nas minhas. Mas me fale de café. Ficaria feliz com isso.
Créditos: Battlecreek Coffee Roasters (destaque); Kwon Junho (amostras de café); Thirdman (café torrado no detalhe); Olof Nyman (servindo café).
PDG Brasil
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