O universo da harmonização de charutos com cafés
Quando se trata de degustação de charutos e harmonizações com bebidas, a primeira associação feita é com o uísque, combinação popularizada culturalmente por uma série de personagens célebres, que vão de Winston Churchill a Jay Z. Mas nem só com uísque se pode parear charutos: é crescente a oferta das bebidas cafeinadas, alcoólicas ou não, nos bares e cafés dos clubes de degustação especializados em charutos de luxo. Sim, foi isso que você ouviu: charutos com café.
Para explorar o universo da harmonização de charutos de luxo com cafés especiais, o PDG Brasil conversou com três especialistas: Leonardo Gonçalves, barista-chefe e proprietário do Café ao Léu, na cidade do Rio de Janeiro, também produtor de cafés especiais; Christopher Carijó, bartender-chefe do restaurante Preto, em São Paulo capital, e barista especialista em cafés especiais (além de comediante stand-up); e Aline Silvestre, especialista e sommelier de charutos de luxo, proprietária do Espaço Quai D’Orsay Tabacaria, um clube de degustação de charutos com bar e cafeteria, também na capital paulista.

Uísque ou café?
Romper os paradigmas do tradicionalismo que prega ser o uísque a única bebida aceitável por “verdadeiros charuteiros” é uma tendência entre os consumidores de charutos de luxo. Parear os cigarros com cafés de especialidade, de forma que os perfis sensoriais e gustativos de ambos se complementam, é um movimento em ascensão nesse segmento.
“O café é uma das melhores bebidas a se harmonizar com o charuto. Sensorialmente falando, seus sabores e notas se encaixam de forma muito harmônica na boca”, diz Léo. Ele acredita que a combinação de café e charuto sempre aconteceu, mas como há uma abertura maior a conhecer o mundo especial do café de modo geral, a harmonização com o charuto também tem sido mais explorada. De acordo com pesquisas específicas sobre esse mercado, o consumo de charutos de luxo está aumentando, e com uma penetração crescente entre gerações mais jovens.
O café é uma bebida mais acessível economicamente do que o uísque, o que não torna a harmonização menos rica, “muito pelo contrário”, acredita Chris. E, diferentemente do uísque, o café pode ser degustado por meio de diversos métodos de preparo. “Além disso, a enorme variedade de sabores e aromas dos cafés produzidos ao redor do mundo facilitam diferentes combinações de harmonização com os charutos – basta achar o grão certo, com o nível de torra certo, e extraído no método ideal”, explica ele.

Origem versus região de produção
O charuto é chamado de premium quando é 100% produzido artesanalmente, e passa por um processo de fermentação que pode durar de meses a anos. Os charutos em geral são majoritariamente manufaturados com o uso de maquinário, mesmo que apenas em parte das etapas de produção. Mesmo assim, a produção dos lotes é de pequena escala, por conta da delicadeza demandada pela operação.
“E, assim como na preparação do café, são tantos os detalhes que antecedem o acendimento de um charuto que a apreciação de ambos deve ser feita da maneira correta, para que as notas aromáticas não se percam”, conta Aline. Importante ressaltar que a região de origem das folhas do tabaco é diferente da região onde eles são manufaturados.
“As folhas usadas na capa e no capote (entre a capa e o miolo) não são necessariamente cultivadas na mesma região onde são feitos os cigarros”, alerta. “Os mestres de blend selecionam folhas de diferentes regiões para criar um mistura exclusiva, como por exemplo: o charuto é feito em Honduras, a folha de capa é uma folha de tabaco da Nicarágua e o capote é uma mistura de folhas de tabaco da Nicarágua, Colômbia e Costa Rica”, explica.

O Brasil e o charuto
O Brasil é o segundo maior produtor de tabaco (com folhas 100% cultivadas no país) do mundo (atrás da China) e o maior exportador. A projeção do mercado é que a receita brasileira quanto ao segmento de charutos manufaturados no Brasil, em sua maioria na região do Recôncavo Baiano, alcance aproximadamente US$ 6,2 milhões em 2022. O Brasil cultiva mais de dez variedades e cultivares da planta do tabaco.
A primeira fábrica de produção de charutos no Brasil, a Costa Penna, foi inaugurada na época do Império, em 1851, na Bahia. O Brasil tem mais de 20 marcas de charutos, e algumas dessas foram criadas por produtores cubanos, radicados no país depois da Revolução Comunista.

Charutos com café: por que eles combinam?
Como o tabaco e o café são mercadorias naturais e agrícolas, a formação do perfil de sabor de ambos sofre a influência das características geoclimáticas dos terroirs onde as plantas são cultivadas. Saiba mais sobre o que é terroir e como ele afeta o sabor do café.
O café e o tabaco são produzidos majoritariamente na faixa de cultivo agrícola chamada de ‘cinturão tropical’ ao redor do Equador, localizada entre as linhas imaginárias da divisão geográfica que definem o Trópico de Câncer e o Trópico de Capricórnio. Essa zona, que abrange territórios na América do Sul, África e Sul da Ásia, é também conhecida como o “cinturão do café”, por reunir as características ideais de cultivo da planta: equilíbrio entre a frequência dos raios solares e das chuvas, estações com períodos e atributos bem definidos, alta umidade e (no caso do café arábica), altitude acima dos 800 metros.
As origens de produção de tabaco associadas a maior qualidade de charutos são as da América Central e Caribe. Cuba é a região mais comumente associada à qualidade desse tipo de fumo de tabaco e da produção dos charutos culturalmente.
Assim como no café de especialidade, o cuidado quanto ao cultivo do tabaco, desde o tempo de maturação ao processo de pós-colheita “são criteriosos para que no final se obtenha uma complexidade sensorial positiva”, explica Leo.

Como harmonizar charutos com café
Para que a degustação seja ideal, no entanto, é preciso conhecer as particularidades da composição química e sensorial dos cafés e charutos para entender como combiná-los. “A combinação ideal dos dois ocorre principalmente graças ao encontro dos aromas mais encorpados de cada um: enquanto o charuto vem carregado da fumaça de queima, o café já passou pelo processo de torra, o que gera notas similares nos dois”, explica Chris.
A classificação de intensidade dos charutos
A designação de origem de um charuto é o primeiro critério de classificação, e aponta o local onde foram manufaturados os cigarros, obrigatoriamente de forma artesanal, e composto apenas de folhas de tabaco em seu interior. O tamanho, a espessura e intensidade (fortaleza) são identificados de forma particular pelas marcas.
A capa de um charuto é a folha que dá o acabamento final ao cigarro. “Não se engane na hora de escolher: a folha clara não significa que o charuto seja suave, ou a folha escura que o charuto seja forte”, alerta Aline. O que dá a tonalidade à folha é o tipo de semente, de cultivo e o processo de cura, amadurecimento e envelhecimento, conta ela.
Combinações de charutos e cafés para iniciantes
A combinação ideal entre o fumo e o café deve compor um equilíbrio entre força (intensidade) e a complexidade dos sabores da bebida. Um charuto com o corpo forte consumido com um café de corpo leve, com notas florais, por exemplo, terá o sabor mascarado pelo fumo, e o mesmo acontece com o oposto: um café encorpado e de sabores marcantes anula as notas gustativas de um charuto suave.
Assim como os níveis de torra do café, que vão de clara e leve a média e escura, os charutos são designados como suave, suave-médio, médio a forte, e forte.
Os três especialistas recomendam aos iniciantes a provar charutos com cafés coados, que conferem maior suavidade ao café.
Como a segunda parte do comprimento do charuto é sempre mais intensa, há quem prefira dividir a degustação em duas fases, com dois tipos de bebidas, ou nesse caso, dois perfis de cafés.
Charuto de força suave ou suave médio
Charutos mais suaves (de origens como Brasil ou Nicarágua), de capa clara, pedem cafés com perfis mais delicados, com notas mais adocicadas, frutadas e carameladas, idealmente extraídos de forma coada. “Combina muito bem com as primeiras puxadas do charuto, que também são mais leves, doces e menos carregadas de fumaça”, diz Chris.
“Nem só de café puro vive um ser: adoro um bom cappuccino com essa primeira metade do charuto”, diz Chris. Já Léo não adiciona bebidas lácteas ou vegetais aos seus cafés. Quando se trata de drinques alcoólicos cafeinados, Chris recomenda o café correto, e Léo, o espresso martíni.
Recomendação da degustação da Aline: “Prepare o café coado e acenda o charuto conforme o ritual. Comece pelo charuto, solte a fumaça devagar e perceba os sabores, e só depois tome o café”. “Escolha os de bitola (a classificação do tamanho, por comprimento e circunferência do cigarro) robusta, que conferem um fluxo mais ‘aberto’ de fumaça”, diz ela.
Charuto forte e encorpado
“Charutos mais fortes podem ser harmonizados com um bom espresso duplo – essa é uma lógica que criei para o meu paladar”, diz Léo.
Charutos fortes, de origens mais clássicas como Cuba e República Dominicana, combinam com café espresso. A torra mais escura usada nesse tipo de extração gera sabores intensos. “Para acompanhar a última metade do meu charuto, recomendo sempre café espresso, pois a quantidade de óleos essenciais formada na extração ajuda o sabor do café a penetrar no paladar, mesmo acompanhada de uma fumaça mais densa”, diz Chris.
A parte final do charuto é normalmente “abandonada” por apresentar um forte amargor, explica Aline. Portanto, a função do café espresso nessa fase é a de equilibrar as notas de amargor e exaltar as características secundárias de sabor.
Recomendação da degustação da Aline: “Deguste a primeira parte do charuto com a bebida de sua preferência, e do meio ao último terço do charuto, faça uma pausa (não apague o cigarro) para preparar e beber o espresso, e só depois retorne para o charuto”.

Depois dessas dicas, vale colocar Buena Vista Social Club pra tocar, preparar seu café, acender o seu charuto e curtir esse baile de aromas e sabores que nos envolve nessa harmonização. E, se você não é fã de charuto, entre no clima mesmo assim e conte pra gente como foi.
Créditos: Acervo Léo Gonçalves; Cigar Emperor Ltd; Yanik Flowers (café coado com charuto); Acervo Chris Carijó; Pixabay (destaque e outras); Jon Tyson (cappuccino com charuto).
PDG Brasil
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