Explorando a conexão do café com a cannabis medicinal em projetos sociais
Um barista viu a vida mudar por conta de uma doença degenerativa e incurável do pai. Com a situação se agravando ao longo dos anos, ele encontrou na terapia canábica uma alternativa para melhorar a qualidade de vida de todos os afetados pelo drama familiar.
Venha conhecer com o PDG Brasil a trajetória do profissional que se encontrou como ativista e ressignificou a jornada no café para difundir a causa e promover a associação Curando Ivo. Assista a seguir o vídeo que repercutiu na internet e descubra os desdobramentos dessa história.
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Um catarinense em Goiás
Filipe Barsan Suzin, de 31 anos, é natural da cidade de Concórdia, em Santa Catarina. Aos sete, mudou-se com os pais e o irmão mais velho para a capital de Goiás em busca de uma vida melhor. Em Goiânia, a família abriu uma transportadora, que se mostrou bem-sucedida. Com os negócios indo bem, o catarinense, que era apaixonado por computadores, teve uma infância confortável e tranquila.
Ao entrar na vida adulta, Suzin entrou para a faculdade de arquitetura e cursou até o oitavo período da graduação. “Não conseguia mais me enxergar nesse meio. Não compreendia muito o propósito do que eu estava fazendo”, contou o jovem em entrevista exclusiva para o PDG Brasil. Depois disso, ele acabou conhecendo o mundo do café em meados de 2013.
O ex-aspirante a arquiteto viu tudo mudar ao ganhar da mãe um curso de barista iniciante no Coffee Lab, em São Paulo. Encantado com os diversos elementos da área, principalmente o trabalho dos produtores de café, ele decidiu se qualificar ainda mais. Entre os diversos módulos e vivências, Filipe teve aulas com professores de peso, como Ivan Laranjeira Petrich. Motivado com a nova carreira, ele decidiu abrir a primeira cafeteria de café especial de Goiânia.

A descoberta da doença
O barista e mestre de torra recém-formado planejava a abertura do novo negócio quando sofreu mais uma reviravolta do destino. O patriarca da família Barsan Suzin foi diagnosticado com Alzheimer aos 52 anos de idade. Os primeiros sintomas da doença surgiram por volta de 2011, e o caso acabou confirmado dois anos mais tarde. Com novas prioridades, o projeto da cafeteria foi suspenso.
O rapaz direcionou os recursos financeiros que tinha para a mudança para uma casa mais adaptada. Mesmo sem nenhum histórico familiar prévio, o quadro de saúde do Seu Ivo atingiu o estágio mais grave em apenas cinco anos. “Meu pai fazia tratamento alopático e vivia dopado. A gente falava que ele estava em um estado vegetativo andando”, relembrou Filipe.

Retorno ao mundo do café
Apesar de toda a situação, Suzin, que já estava trabalhando com eventos gastronômicos, decidiu retomar a carreira no café em 2017, quando começou a participar de imersões em fazendas produtoras. Ao lado de Décio de Mendonça, criou o Gratidão Café. A ideia da dupla era visitar mais de 70 cidades do Brasil em um período de seis meses com uma torrefação móvel engatada em um carro.
Diante das dificuldades encontradas durante a expedição, o tour criado para promover a cultura do café especial acabou encurtado para apenas dois meses. Com o revés no projeto, os sócios voltaram para casa e abriram uma unidade física da cafeteira em uma galeria, que era considerada o primeiro shopping de Goiânia.
Enquanto os negócios prosperavam, Filipe convivia com uma realidade cada vez mais complicada em casa. “Eu tentei levar o café junto, toda hora que precisava, saía correndo do café para ajudar minha mãe a dar banho no meu pai. Isso estava pesando muito”, lamentou o então empreendedor. Para ele, o Alzheimer provoca um sofrimento silencioso tanto para o paciente quanto para os familiares e responsáveis pelos cuidados.

Cannabis medicinal e vídeo viral
Sem muitas perspectivas de melhora do quadro de saúde, Suzin apostou na terapia canábica como a última alternativa para oferecer uma qualidade de vida melhor para o Seu Ivo, que apresentava comportamento violento e agressivo. O rapaz começou a sugerir o tratamento com maconha medicinal em 2013. Porém, a sugestão só foi aceita pela mãe cinco anos depois, quando a situação já estava ficando insustentável.
Com a intenção de produzir um documentário, o profissional do café começou a registrar os efeitos dos derivados da cannabis no comportamento do pai. “Queria provar para as pessoas que duvidaram da eficácia que elas estavam erradas”, relembrou. O uso foi prescrito por um médico, e o fitoterápico foi conseguido por meio de uma associação.
Em abril de 2019, feliz com a evolução, o jovem compartilhou, também como forma de desabafo, um vídeo que mostrava os resultados parciais da administração do extrato para o ex-empresário. O material viralizou nas redes sociais e causou uma grande comoção nacional.
As proporções foram tão grandes, que ele passou a ser convidado pelos principais veículos de comunicação do país para entrevistas, além de ser procurado por pessoas que convivem com dramas semelhantes envolvendo parentes doentes.

Estudos no Brasil e no mundo
A maconha possui um grande potencial terapêutico, que permite uma série de aplicações. As primeiras publicações com o termo “cannabis” em revistas médicas surgiram nos anos 1960, apresentando um boom até a década seguinte. Porém, o interesse pelo assunto acabou reduzido após a política de combate às drogas do presidente dos EUA Richard Nixon.
Os estudos sobre os efeitos terapêuticos da planta voltaram a atrair o interesse dos pesquisadores no fim da década de 1990, quando o sistema endocanabinóide foi descoberto. No Brasil, o primeiro ensaio clínico sobre o tratamento da epilepsia com canabidiol, uma das inúmeras moléculas presentes na maconha, foi realizado em 1980 pelo Prof. Dr. Elisaldo Carlini, considerado um pioneiro e uma referência mundial em estudos farmacológicos.
Já o movimento de mudança na legislação brasileira e da opinião pública sobre o uso medicinal se iniciou em 2013 com a divulgação do caso da menina Charlotte Figi. Portadora de síndrome de Dravet, a criança sofria de um quadro severo de epilepsia resistente aos medicamentos e apresentou uma melhora considerável com o extrato de cannabis enriquecido com canabidiol.

Segundo o Dr. Renato Filev, neurocientista formado pela Unifesp, “os compostos da maconha atuam em diversos sistemas do corpo humano, mas é o endocanabinóide que permite essa amplitude de possibilidades de tratamento”. Os mensageiros e receptores estão espalhados pelos tecidos do organismo “desempenhando papéis funcionais, fisiológicos, metabólicos, psicológicos e patológicos”.
Os canabinóides têm a função de modular a comunicação celular. Por conta disso, os médicos precisam traçar uma estratégia terapêutica considerando os princípios ativos utilizados, como o THC e o CBD, e as concentrações adequadas para atingir os benefícios terapêuticos. Além das moléculas, o método de administração também é uma variável importante na prescrição do tratamento.

Do café ao ativismo
Ao perceber a dimensão da repercussão do caso do Seu Ivo, Filipe Suzin encontrou um propósito na causa. Contando com o apoio e o suporte financeiro da família, que segue com a transportadora, ele encerrou as atividades do Gratidão Café para se dedicar ao ativismo canábico. Inspirado pela ajuda que teve no tratamento do pai, o rapaz decidiu fundar a associação Curando Ivo.
Essas entidades cumprem um importante papel no Brasil, pois as terapias com cannabis apresentam uma série de barreiras. A falta de informação e de capacitação afeta a procura e a disponibilidade de médicos prescritores. Já as vias de acesso aos canabinóides são limitadas.
Pacientes com recursos financeiros conseguem importar ou comprar os medicamentos em farmácias a um custo elevado. Também é possível obter autorização judicial para o cultivo e o beneficiamento caseiro da maconha, que exige um investimento inicial considerável. Já o fornecimento de extrato produzido pelas associações acaba sendo uma alternativa mais econômica.

A associação Curando Ivo
“A gente almeja a produção do remédio. Para isso, precisamos cultivar a planta, ter laboratório. Por isso, estamos estruturando bem minuciosamente a associação Curando Ivo. Queremos ter todos os processos, desde atender o paciente, fazer o acompanhamento e fornecer os canabinóides”, revelou Suzin, que montou uma rede de apoio para seguir com os planos.
Entre os apoiadores há médicos, farmacêuticos e instituições de pesquisa, como a Universidade Federal de Goiás, a UFG. A entidade também recebeu uma doação de um lote com 10 mil m² para a produção de derivados de maconha sem fins lucrativos.
Para angariar recursos, Filipe teve a ideia de produzir pacotes de café especial torrado com a marca da associação a partir de sacas de grão verde que haviam sobrado do Gratidão Café. Com insumos e mão-de-obra próprios, ele passou a reverter 100% do valor das vendas para o Curando Ivo.
A iniciativa rendeu ainda mais parceiros que decidiram doar café para o projeto, como o Bruno Souza, da Academia do Café, e produtores de Piatã, na Bahia. A associação ainda conta com o apoio do Subverso Café, que cede o próprio espaço para a realização das torras e das vendas dos produtos, cujo catálogo inclui canecas, camisetas e pôsteres.
Co-fundador da entidade, Antonio Rocha Lemes Neto, que foi barista da antiga cafeteria de Filipe, não titubeou em oferecer o próprio estabelecimento para realizar as ações comerciais e assumir os custos operacionais. A mulher de Antonio também é voluntária do Curando Ivo como médica prescritora da terapia canábica. “A maioria dos meus clientes apoia e procura as mercadorias da associação”, revelou Neto.

Planos para o futuro
A associação Curando Ivo tem como lema a frase “não espere precisar para apoiar”. A ideia é levar informação para a sociedade sobre as terapias com cannabis e buscar apoio popular em favor da causa. Com isso, Suzin entende que o café e o ativismo podem andar juntos, já que a cadeia envolve indivíduos de diferentes realidades.
Em breve, o projeto deve ganhar um e-commerce que permitirá que pessoas do Brasil e do mundo apoiem e comprem os pacotes de café, além dos outros produtos em prol da entidade. Filipe também planeja parcerias com cafeterias de diferentes estados que acreditam na proposta e ajudem a divulgar o movimento e promover o debate sobre a cannabis medicinal.

No fim da entrevista, o barista e ativista fez questão de relembrar o caso do Seu Ivo. “Até hoje a gente se emociona, porque foi uma mudança muito grande. Antes meu pai não aceitava se alimentar direito, sentar, dormir e tomar banho, Ele apresentava alterações bruscas de humor com muita agressividade. Hoje, ele está o tempo inteiro sorrindo, dançando e realizando as atividades do dia a dia com mais leveza”, comemorou Suzin.
Créditos: Acervo pessoal dos entrevistados, Antonio Rocha Lemes Neto, Divulgação da Associação Curando Ivo, Filipe Barsan Suzin e José Pinheiro Junior.
PDG Brasil
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