23 de março de 2022

Os desafios para tornar o café especial mais inclusivo no Brasil

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Vivenciamos nos últimos anos um crescimento do mercado de cafés especiais, tanto na área da produção, no comércio, torrefação, na indústria de máquinas e equipamentos, no consumo, na oferta de cursos e entre outros. 

Mas, se o café especial é tão bom, por que então não temos mais pessoas envolvidas, mais produtores, torrefações, empresas e muito mais consumidores desfrutando da experiência de beber cafés especiais? 

Ainda mais no caso do Brasil, onde o café faz parte do nosso hábito cultural, maior produtor e exportador, além de possuir um enorme mercado consumidor.

Dentro da jornada do grão à xícara, nos deparamos com alguns desafios que impedem tornar o café especial mais inclusivo e acessível dentro do Brasil. Importante dizer que estamos considerando o seguinte conceito para a palavra “inclusivo”: “Algo capaz de incluir, de inserir, de acrescentar algo no interior de outra coisa. Que inclui, que não deixa de lado, que abarca, abrange, integra ou compreende”.  

Conversamos com alguns profissionais que atuam em diferentes segmentos do café especial para explorar e entender os diferentes pontos de vista de quem vivencia os desafios da inclusão do café especial no Brasil. Falamos com Henrique Cambraia, presidente da BSCA, com Rodrigo Moll, sócio da Mokado Lab de Cafés, com Natália Braga, barista consultora, torrefadora e atua na área de análise e qualidade da Glocou, e Robin Kimura, do Cuesta Café.

Você também pode gostar de ler nosso artigo sobre A nova geração do café.

café especial mais democrático

O café especial é para poucos?

Muitas vezes o café especial passa a ideia de um produto de nicho de mercado ou de exclusividade. E dentro da comunidade do café especial existe um senso de pertencimento que vai além da paixão por boas xícaras.  

Pensando nisso, a forma como comunicamos o produto também pode ser um dos fatores que impedem a inclusão de novos consumidores no mundo dos cafés especiais. Por exemplo, há aquele consumidor interessado em entrar no mundo dos cafés especiais, mas ele pode encontrar um cenário muito “especial” e nada atrativo. 

Para o Rodrigo Moll, sócio da Mokado Lab de Cafés em Brasília, o próprio nome café “especial” é uma forma de distanciamento do público. Ele destaca a importância das estratégias de comunicação para tornar o café especial mais inclusivo e acessível. “Não comunicamos como ‘café especial’. A nossa comunicação é feita como ‘café de especialidade’, que é o termo utilizado no mundo inteiro. Com isso queremos deixar uma mensagem de singularidade e de alimento”. Ele ainda acrescenta: “Queremos mudar a cultura do preço para a cultura do apreço”.

Além da comunicação, podemos destacar outras barreiras que impedem tornar o café especial mais inclusivo no Brasil, como, por exemplo, o preço cobrado pelo produto, a falta de oferta ou simplesmente a falta de conhecimento sobre o café especial.

café especial mais inclusivo

A inclusão pelo consumo

Produzir e comercializar um produto de qualidade e que possibilite o consumidor a ter experiências sensoriais não significa focar em algo exclusivo ou de nicho. 

Além da linguagem e da comunicação, a educação e a informação também podem ser estratégias fundamentais para a inclusão de consumidores no café especial. 

É o que defende Henrique Cambraia, da BSCA, instituição que reúne produtores, torrefações, indústria e profissionais do mercado de café especial de todo o Brasil. Para ele, levar a educação na ponta, ou seja, para os consumidores, é um grande desafio. 

“A educação é um grande potencializador da inclusão”, diz. “Poder de compra é um problema, na gôndola, o café especial tem um valor diferente do tradicional. Contudo, conhecendo o mundo dos cafés especiais, mais pessoas se unem e fortalecem esse mercado.”  

“Algumas grandes marcas de café do Brasil têm tido um papel fundamental para difundir e apresentar o conceito de café de qualidade”, acredita. 

Rodrigo Moll comenta que o trabalho de educação com os clientes e consumidores é muito importante. “Às vezes é necessário gastar mais ‘saliva’ do que café”, conta. E concorda com Henrique: “As grandes indústrias que têm apostado no café de qualidade têm ajudado na difusão da informação”.

Contudo, nem sempre a educação por si só é suficiente para tornar o café mais inclusivo no Brasil. Outras estratégias conjuntas podem incentivar o fortalecimento do consumo.

Natália Braga, da Glocou, acredita que somente pela educação do consumidor não será possível engajar e fidelizar o público. “Também será preciso criar um diálogo do ponto de vista dos tipos de cafés especiais oferecidos.” 

Para ela, o café especial ainda não é para “todos”, nem do ponto de vista de preço e nem do ponto de vista da experiência sensorial.  

Ela defende o uso de estratégias diferenciadas para aproximar e quebrar algumas barreiras para os novos consumidores, como, por exemplo, “adotar como parte do portfólio alguns cafés com o perfil sensorial mais próximo do que o consumidor está habituado e que também sejam de melhor custo/benefício para a torrefação. Por exemplo, cafés com pontuação SCA de 80 a 83 pontos”. 

café de especialidade

A inclusão pela torrefação

As torrefações lutam para tornar o café especial mais inclusivo e também para se manterem competitivas no mercado. Precisam equilibrar o preço justo pago ao produtor e entregar um produto de qualidade e economicamente viável. 

Henrique Cambraia também destaca que, no mercado de cafés especiais, apesar de uma boa margem bruta do produto, o grande desafio é a escala. “Para a torrefação, o café especial tem uma boa margem, mas não tem a escala e, com isso, não paga os custos de logística e promoção. A solução seria possibilitar um efeito de escala para incluir mais pessoas.” 

Na mesma linha, Rodrigo Moll aponta que, mesmo com todo o esforço da sua torrefação em fazer um café mais acessível na questão preço e qualidade, ele ainda esbarra em alguns gargalos. “É muito difícil competir em preço com a indústria, afinal torramos em um equipamento de 5 kg, todo o nosso processo é manual e em pequena escala. O custo operacional acaba sendo maior, e o volume de produção muito menor e, isso tudo, reflete no preço final.”

Por outro lado, Natália Braga aponta que muitas torrefações buscam um posicionamento que acaba por dificultar o acesso do produto (café verde) e a viabilidade do negócio, para ela: “criou-se um nicho de mercado, onde todos querem trabalhar com o microlote”. 

Ela acrescenta: “A oferta desse café [microlote] é muito menor”. “Não parece fazer sentido, não parece ser uma forma de equalizar preço. Não se trata de uma disputa pelo melhor sensorial, mas em garantir o consumo diário e a compra recorrente.” 

café especial brasil

Inclusão dentro do cafezal

O produtor rural é a linha de frente para a continuidade da produção de cafés de qualidade. 

E a sua inclusão nesse segmento é fundamental, seja por meio do preço justo, oportunidades para o pequeno produtor, apoio à comunidade local, incentivo à inclusão de mulheres, capacitação dos jovens, assistência técnica e educação. 

Para Robin, do Cuesta Café, a falta de conhecimento dentro da cadeia de suprimentos impede que mais pessoas participem. Seja na valorização do café pago ao produtor ou na xícara dentro da cafeteria. 

Robin explica que dentro da Cuesta Café há um trabalho voltado para a inclusão dos consumidores dentro do processo de produção. 

qualidade do café

A ideia do “Coffee Tour” é proporcionar aos amantes do café ou curiosos pela bebida a oportunidade de participar e conhecer todas as etapas do ciclo de produção. 

Ele explica que: “A intenção do Coffee Tour é apresentar para a própria comunidade a qualidade dos cafés da região, promovendo o fortalecimento da origem. Criamos um roteiro que apresenta todos os processos da produção, desde o plantio, viveiro, colheita, pós-colheita, até a degustação na torrefação”. 

“O nosso trabalho hoje é levar informação. Ainda estamos na fase de compartilhar com o público sobre o que ele está consumindo, para o apreciador entender o que é um café especial e o que não é.” 

Henrique Cambraia explica que, para promover a produção e a inclusão no campo, a BSCA faz um trabalho de marketing especializado com diversas ações. Um exemplo é a promoção dos concursos de qualidade de cafés produzidos no Brasil. Ele explica que alguns dos produtores que participam dos concursos nunca imaginaram ser capazes de produzir um café especial. E isso acaba por criar a  possibilidade da inclusão de novas origens e de novos produtores no processo produtivo de cafés especiais. 

Além disso, Henrique Cambraia destaca o foco da BSCA em promover a imagem dos cafés especiais brasileiros nas feiras internacionais, possibilitando o acesso a novos mercados consumidores.

E que tal um conceito de café especial que seja também mais inclusivo?

Quando nos referimos ao café especial, trazemos o conceito de um produto de alta qualidade, sendo produzido e transformado de forma diferenciada dentro da cadeia de suprimento e possibilitando uma experiência única ao consumidor. 

Ainda persiste o desafio de encontrar um conceito que também seja mais inclusivo e consiga abraçar as diferenças e as diversidades presentes dentro da jornada do café de qualidade. 

Um conceito que vá além da análise de uma amostra de café verde sem a presença de defeitos primários e não mais do que 5 defeitos secundários, ausência de quaker (grãos imaturos que não desenvolvem durante o processo de torra e podem comprometer o perfil sensorial do café.) e pontuando entre 80 a 100 pontos pelo protocolo SCA (classificação feita pelo Q-grader). 

Pensando nisso, a SCA no final de 2021 publicou o artigo intitulado “Towards a Definition of Specialty Coffee”, no qual propõe uma discussão sobre o conceito de café especial. A nova proposta é baseada no conceito por “atributos” como a fonte de valorização e diferenciação do café especial. 

Atributos esses que podem ser intrínsecos (defeitos, pontuação SCA, tamanho do grão) e extrínsecos (origem, o nome do produtor, método de produção, certificações etc.). 

No conceito proposto pela SCA, é dada menos ênfase a normas de qualidades universais e mais ênfase à forma como celebramos os diferentes atributos em diferentes mercados. 

Dessa forma, é reconhecida toda a diversidade presente na produção de cafés especiais e nos mercados consumidores.

Ao ser questionado sobre o que seria um conceito de café especial mais inclusivo, Henrique Cambraia, presidente da BSCA, disse: “Dentro do conceito de cafés especiais deve incluir os temas ambientais e os critérios sociais que conectam a produção com consumo”. 

Ele ainda acrescenta: “O café especial, por meio de todas as suas certificações, códigos de conduta ligados a critérios de comunidades e de meio ambiente passa a considerar as preocupações do consumidor final e da sociedade”. 

democratizar o café especial

O café especial tem a fantástica capacidade de transformar e criar um senso de comunidade para quem é apaixonado pela bebida. 

Olhando simplesmente pelo ponto de vista da oferta e da demanda, o cafeicultor só conseguirá se manter na produção de cafés especiais se houver demanda pelo produto e preço justo. Já o consumidor só conseguirá desfrutar da experiência de beber um café especial se houver a produção nas fazendas e uma bebida com o preço acessível. 

É essa relação de “existência” que está presente em toda a jornada do café especial, entre o produtor e torrefação, torrefação e cafeterias, cafeteria e clientes e em todas as outras relações que compõem toda a rede do café especial. 

Após explorarmos as diferentes visões envolvidas, percebemos que é preciso dar voz para quem vive e consome o café especial no Brasil. E ouvir as demandas e criar caminhos para atendê-las é uma forma de incluir e democratizar a bebida. 

Créditos: Felipe Orioli (pesando café e torra probatino), Rodrigo Moll (Rodrigo Moll saca de café e preparando caixas de café), acervo BSCA (destaque/café no terreiro suspenso, grupo de mulheres trabalhadoras do café e o presidente da BSCA, Henrique Cambraia) e Robin Kimura (aula de métodos para o consumidor e coffee tour na fazenda Cuesta Café). 

PDG Brasil

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