Acredite: o doce do café não vem do açúcar
É exatamente isso mesmo o que você leu, a doçura natural do café não é causada pela presença de açúcar.
Isso porque mais de 97% da sacarose presente no café verde é degradada durante a torra e outros açúcares simples estão presentes em concentrações de 100 a 1.000 vezes menores que a concentração mínima que podemos detectar.
Para entender melhor sobre esse tema conversamos com o professor e pesquisador Imre Blank, ex-pesquisador do Centro de Pesquisa da Nestlé e, atualmente, pesquisador Sênior do Coffee Excellence Center, na Suíça.
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A percepção do gosto doce
No momento em que bebemos ou comemos alguma coisa, temos consciência das sensações que são provocadas. É nesse momento que dizemos que ocorreu a ‘percepção’, ou seja, nós identificamos o que estamos ingerindo. Essa percepção ocorre pela ativação dos nossos sentidos: olfato, tato, visão, audição e gosto.
A percepção do gosto acontece por meio de células receptoras sensíveis ao estímulo, localizadas na parte frontal, lateral e no final da língua, assim como no palato, nas bochechas e no esôfago.
As células receptoras de doçura foram descobertas apenas há cerca de 20 anos. Dois receptores se destacam, T1R2 e T1R3, por serem quase que exclusivamente responsáveis por detectarem o gosto de açúcares e adoçantes. Ao contrário do que muitos afirmam, os receptores de doçura da língua não são mais sensíveis do que os receptores dos outros gostos (salgado, ácido, amargo ou umami).

O papel da torra
A sacarose, ou açúcar de mesa, é um composto que pertence ao grupo dos carboidratos, assim como amido, celulose, glicose, lactose etc.
Cerca de 40 a 65% do café verde são carboidratos, principalmente polissacarídeos (celulose) e oligossacarídeos (galactomananas e arabinogalactanas) – que NÃO conferem sabor doce, além de pequenas concentrações de açúcares simples (sacarose, a glicose, frutose, galactose, arabinose, xilose). Esses açúcares simples, mesmo presentes em pequenas concentrações, são essenciais na formação de cor e aroma no café torrado, por meio de reações de caramelização e de Maillard.
Ambas as reações, também conhecidas como reações de escurecimento não-enzimático, ocorrem quando o café é aquecido durante a torra. Para que ocorra a caramelização são necessárias temperaturas altas e somente a presença de açúcares. Por outro lado, a reação de Maillard ocorre em temperaturas altas (~ 150oC) em presença de açúcar (redutor) e aminoácidos. Essa reação é considerada a mais importante reação para a formação do aroma de café.
Os açúcares simples, mono e dissacarídeos, são muito sensíveis a altas temperaturas e são destruídos logo no início da torra. Já os polissacarídeos não são importantes na formação de aroma, porém contribuem para outras características sensoriais do café, como a viscosidade e corpo, mas não doçura.

De onde vem a doçura natural do café?
Segundo o Dr. Blank, “pouco se sabe sobre os compostos responsáveis pelo sabor doce no café”. O que sabemos é que não é pela presença de açúcar e, por isso, diversas hipóteses foram criadas para explicar esse “mistério”.
Uma delas é que, o café tendo uma composição muito diversa e complexa, com centenas de compostos atuando em conjunto para resultar numa sensação global, os outros atributos mais evidentes, como acidez e amargor, nos ‘atrapalham’ perceber a doçura no café.
Em um estudo publicado no Journal of The Science of Food and Agriculture , durante o preparo do café, diversas coletas foram realizadas conforme o café ia “passando”. Foi verificado que a percepção da doçura do café foi maior nas coletas finais, ou seja, quando o café estava mais diluído (fraco). Porém, a concentração de açúcar era muito menor nessas coletas finais que nas coletas do começo.
Os pesquisadores explicaram que isso ocorreu pois os compostos mais amargos e adstringentes, como a cafeína e os ácidos clorogênicos, já foram quase que totalmente extraídos nas primeiras coletas, portanto deixaram de ‘mascarar’ a doçura das coletas finais.
Isso é bem fácil de entender. Pois adicionamos açúcar (gosto doce) ao café para diminuir seu gosto amargo.
Essa incoerência, de aumento da doçura com redução na concentração de açúcar, indica que a percepção fisiológica do gosto doce não é a principal responsável pela resposta à doçura.
Na realidade, já foi demonstrado em um estudo publicado na revista Food Chemistry, que alguns compostos presentes no café funcionam como moduladores e modificam a forma como percebemos suas características sensoriais. Por exemplo, a celotetraose é um açúcar presente no café que não tem gosto nenhum, mas que de alguma forma reduz o amargor da cafeína.

O papel dos aromas na doçura
O que leva a outra hipótese bastante consistente: a de que alguns aromas adocicados, por exemplo de caramelo, potencializam a percepção do gosto doce. Um artigo de Charles Spence, pesquisador inglês que é uma das grandes referências mundiais em percepção multissensorial, demonstrou que a doçura foi mais evidente em alimentos com aromas adocicados, por exemplo, 2,3-butanodiona e 2,3-pentanodiona, mesmo sem que esses alimentos tivessem açúcares em sua composição.
De acordo com o professor Blank, “esses aromas são formados durante a torra a partir da degradação dos açúcares”. De alguma forma, eles modulam o sabor natural do 2-furfuriltiol, que tem naturalmente um sabor desagradável de borracha, para uma nota agradável de café torrado. “É bem possível que esses aromas adocicados mencionados interajam de modo similar ao que ocorre com o 2-furfuriltiol para realçar o gosto doce do café”, diz Blank.
Outro estudo, publicado na Food Research International, mostrou que, em cafés onde foi adicionado açúcar, houve a dominância de certos aromas mais adocicados: torrado, caramelo e de nozes. Esses resultados sugerem que o efeito contrário também ocorre, ou seja, o aumento desses aromas pode resultar em maior percepção de doçura. Portanto, a percepção da doçura é uma percepção multissensorial entre o olfato e o paladar, ou seja, estão “funcionalmente unidos mesmo que anatomicamente separados”.
Dr. Blank destaca que uma classe importante de compostos voláteis e que impactam diretamente a doçura do café é a das enolonas cíclicas, que podem atuar como realçadores de sabor e aromas. Dependendo da sua estrutura química, essas enolonas podem contribuir ou realçar o gosto doce no café, por exemplo a 2,5-dimetil-4-hidroxi-2(3H)-furanona que confere notas de caramelo. Outras, como a 4,5-dimetil-3-hidroxi-2(5H)-furanona, destacam odores adocicados de xarope.
Por fim, há que ser considerado que outros compostos desconhecidos presentes no café, ou que foram formados durante a torra, podem exibir certa doçura. Ou ainda compostos que já são conhecidos por conferir certa doçura, como é o caso das arabinogalactanas, já descritas como sendo levemente doces.

Ao apreciarmos a nossa xícara de café nem sempre pensamos em todos os fatores que estão envolvidos na nossa percepção.
O que sabemos é que o café e suas características sensoriais continuam sendo bastante misteriosas e muitos estudos ainda precisam ser conduzidos para compreendermos as diversas interações dos compostos do café a nível molecular, para assim conhecermos melhor como o café nos afeta.
Mesmo assim, ainda podemos seguir dizendo que somos apaixonados por essa bebida que é naturalmente doce.
Créditos: Christoph Hetzmannseder, Battlecreek Coffee Roasters, Vladimir Proskurovskiy, Gilaxia, Michael Burrows, Pexels.
PDG Brasil
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