O cheiro além do nariz: como você percebe o aroma do café
Nós percebemos o mundo ao nosso redor por meio dos vários sentidos, visão, tato, paladar, audição e olfato, que se complementam para formar nossa experiência global, ou seja, multissensorial. Isso porque o mundo não nos é mostrado de forma fragmentada, restrita a um sentido apenas, mas de uma maneira complexa e integrada entre eles.
Além dessa combinação entre os sentidos, especificamente na percepção dos cheiros, o olfato tem uma natureza inerentemente multissensorial. Enquanto a ideia tradicional aristotélica dizia que o olfato é um dos cinco sentidos externos, para o renomado psicólogo e professor emérito da Universidade de Chicago, Paul Rozin, o olfato funciona de duas formas, que percebe coisas externas e internas ao corpo.
Para saber mais sobre as diferentes formas de percepção dos aromas, o PDG Brasil conversou com dois pesquisadores especialistas no assunto.
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Os caminhos do cheiro
Hoje, de fato, sabemos que os seres humanos não têm apenas um, mas dois sentidos olfativos: o ortonasal e o retronasal.
Ortonasal (orto = origem/princípio) é o aroma percebido antes de ingerir o alimento, quando o aroma é inalado pelo nariz. É quando o ar ao redor do nariz, contendo compostos químicos que conferem aroma, são captados pelo nariz por meio da respiração. Esses aromas atingem a cavidade nasal onde é percebido por uma rede de receptores capaz de detectar e identificar centenas de aromas diferentes. Essa região tem cerca de 5 cm2 e contém cerca de 10 a 20 milhões de células receptoras.
Já o olfato retronasal, termo usado pela comunidade científica a partir 1984, refere-se ao aroma que é sentido a partir de alimentos presentes na boca, ao mastigar ou engolir, quando esses aromas são impulsionados para cima por meio da garganta até a parte de trás da cavidade nasal (por isso “retro”, que significa atrás/por trás). Os aromas são percebidos pelo epitélio olfatório e são então exalados pelo nariz. É por isso que conseguimos sentir o cheiro de alimentos que já estamos mastigando.
Faça um teste: a próxima vez que estiver comendo algo, tampe o nariz, você vai perceber que ainda consegue sentir cheiros.

A diferença do cheiro no orto e no retronasal
Os estudos sobre esse assunto são muito desafiadores considerando que a percepção de aroma é muito dinâmica e sujeita a diversas fontes de variações, por exemplo, da pessoa que ingere o café: a composição e o volume da saliva, movimentos da boca, respiração; do modo de preparo/composição da bebida: cappuccino, solúvel, filtrado, café gelado, com ou sem açúcar; e das características físico-químicas dos aromas: volatilidade e polaridade, por exemplo.
Chahan Yeretzian, coordenador do Coffee Excellence Center, da Universidade de Zurique de Ciências Aplicadas (Suíça), destaca que as notas e atributos do aroma de café são distintos se forem percebidos pelo aroma orto ou retronasal. Isso ocorre pois o transporte dos aromas é diferente nas duas vias, portanto, a composição de aroma orto ou retronasal, detectada pelo epitélio olfativo, também é diferente. Isso ocorre porque os aromas estão em ‘ambientes’ diferentes.
No ortonasal, os aromas percebidos são aqueles que são liberados pela bebida e que estão dissolvidos apenas em água numa certa temperatura. Enquanto que, no retronasal, os aromas são liberados a partir de uma solução complexa, a saliva, além de serem afetados pela temperatura corporal e movimentos da boca, ritmo respiratório etc.
Isso pode explicar muito as razões pelas quais pessoas diferentes, ou em diferentes estados emocionais, percebem aromas distintos e em diferentes intensidades.
Alessandro Genovese, professor de química e tecnologia do aroma na Universidade de Naples Federico II (Itália), explica que estudos mostraram essa diferança. “Algumas classes de aromas são mais intensas no retrosanal do que no ortonasal”, diz. Por exemplo, aldeídos, cetonas, terpenos e metilpirazinas, associados a notas de gordura/manteiga, frutadas e herbáceas, são mais intensas no retronasal. Enquanto que as furanonas (notas de caramelo) são mais intensas no ortonasal.

O aroma residual
Muito provavelmente você já ouviu falar em gosto residual ou aroma residual. Isso se refere àquela sensação de ainda notar alguns aromas mesmo alguns segundos depois de ingerir alguma coisa. Alguns aromas, por exemplo, podem permanecer ligados aos receptores olfativos por certo tempo, prolongando sua percepção. Essa percepção prolongada é muito importante no café, pois sendo uma bebida e rapidamente ingerida, esse aroma residual é um dos principais componentes da percepção global do aroma.
O Dr. Genovese comenta que os lipídios e os solutos estão diretamente associados ao aroma residual, pois esses componentes afetam o desprendimento dos aromas da bebida e, portanto, a persistência do aroma de café na cavidade nasal. Lipídios aumentam a persistência da maioria dos aromas pois, ao serem diluídos pela saliva, vão lentamente liberando os aromas. É por isso que o aroma residual de café espresso é mais intenso que no café filtrado, pois o espresso tem uma concentração lipídica superior.
Ele ainda acrescenta: “aromas com uma afinidade maior pela mucosa oral são retidos mais fortemente, e são posteriormente desprendidos da mucosa devido à mudança no equilíbrio termodinâmico que ocorre no interior da boca depois da deglutição”.

Treinando o nariz (e a boca)
Foi demonstrado que é possível monitorar a persistência dos aromas no epitélio nasal. Dr. Yeretzian vê que esses insights podem contribuir para uma melhor experiência sensorial, principalmente na degustação de profissionais. Isso pode ser muito útil para os degustadores, pois podem ser treinados a modular e maximizar a intensidade que o aroma atinge o nariz, permitindo detectar diferenças muito pequenas.
Entre esses aspectos que podem contribuir para a percepção estão os protocolos de degustação. Se você já presenciou uma degustação de café, percebeu que os avaliadores não bebem o café da forma tradicional, mas “sugam” o café com a ajuda de uma colher especial (mais funda, que lembra uma colher de molheira). Ao fazerem isso, melhoram a percepção dos sabores e, principalmente, dos aromas do café pois, ao sugar, se formam microgotículas de café no interior da boca que aumentam a superfície de contato do café com os receptores e facilitam a percepção dos aromas.

Mesmo sem conhecer as diversas vias onde os aromas são percebidos, os aromas orto e retronasal percebidos pelos amantes do café afetam diretamente a apreciação de algumas bebidas e, consequentemente, sua intenção de compra.
Essas descobertas são particularmente interessantes para baristas que criam receitas de novas bebidas de café. Ao conhecer as diferentes vias com que percebemos o aroma do café, e como isso é afetado pela composição da bebida, eles serão capazes de potencializar ou modular essas diferentes sensações, criando produtos mais inovadores.
Créditos: Flickr/CIAT (destaque); Danielle Torres (ilustração), Estela Simões (cupping); European Coffee Trip (cupping); Ron Lach (cheirando o café na Chemex); Viktoria Alipatova (mesa com café e comidinhas).
PDG Brasil
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