20 de janeiro de 2022

O que é o defeito de “queijo velho” no café?

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Você já percebeu um aroma de queijo velho no café? Já sabemos que a qualidade e o sabor da bebida do café são determinados por inúmeros fatores. Variedade genética, clima, solo, origem geográfica, práticas de cultivo e processamentos pós-colheita são alguns deles. Após processado, esse café (verde) será torrado, depois, moído e preparado antes de ser consumido. 

É muito comum que se relacione a qualidade da bebida às características do café verde, pois nele há todos os precursores de sabor e aroma de café (ou seja, os compostos presentes no grão verde que, durante a torra, são transformados em outros compostos que conferem sabor e aroma). No entanto, recentes descobertas indicam a importância dos processamentos de pós-colheita no aumento (ou redução) da qualidade do café e diferenciação quanto a sabores.

Um dos aspectos que podem surgir no pós-colheita é o chamado aroma de queijo velho, considerado um defeito. Para saber mais de onde vem e por que esse aroma vem ganhando destaque, o PDG Brasil conversou com dois pesquisadores para comentar esses fenômenos.

Você pode gostar também de ler Guia da fermentação: primeiros passos para fermentar café especial.

café verde

Qualidade do café depende do pós-colheita

Os processamentos de pós-colheita visam a remoção da casca e da mucilagem para se obter o café verde. Esses procedimentos podem modificar ou ajustar a qualidade intrínseca do grão e, por exemplo, enfatizar atributos sensoriais, como acidez ou corpo, sem necessariamente alterar outras características sensoriais da bebida. 

Os métodos de pós-colheita mais conhecidos e aplicados são por via seca (natural) e via úmida (cereja descascado). Porém outros métodos, como o honey e a fermentação, se destacam por resultarem em cafés com características sensoriais distintas. 

Para a neurocientista Fabiana Carvalho, fundadora do projeto The Coffee Sensorium, com a fermentação do café, quando realizada de forma controlada, se consegue intensificar a percepção de certas notas/atributos além de se aumentar o número de notas, criando uma diversidade maior de sabores.

Deve ser destacado que a fermentação, se mal conduzida e sem um controle efetivo, pode favorecer o surgimento de sabores e aromas indesejáveis no café, como é o caso do cheiro de queijo velho (também descrito como cheiro de “chulé”), fortemente associado a problemas durante a fermentação do café. 

fermentação do café

Fermentação do café

A fermentação é um processo bioquímico realizado por microrganismos em que moléculas complexas são quebradas em moléculas mais simples. 

No processamento do café verde, a fermentação ocorre espontaneamente em ambos os métodos de pós-colheita, via seca e úmida, e tem o propósito de facilitar a remoção da mucilagem, rica em carboidratos. 

Nesse processo, enquanto os microrganismos se desenvolvem, são produzidas enzimas que degradam a estrutura do café e formam outros produtos (metabólitos) que se acumulam no grão e passam a funcionar como precursores de sabor e aroma (açúcares, aminoácidos, ácidos clorogênicos etc.).

Leandro Carlos Paiva, coordenador do Setor de Industrialização de Café e diretor do Polo de Inovação Agroindústria do Café do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais, diz que “a fermentação é um processo, assim com o ‘cereja descascado’ ou ‘natural’, e que, se bem feita, acaba acrescentando qualidade sensorial ao café por meio do acréscimo em acidez”.

Fabiana Carvalho acrescenta que as notas principais dos aromas em cafés fermentados são principalmente frutadas, sendo possível perceber aroma de abacaxi, banana, morango, porém também podem ser identificadas notas que remetem ao vinho tinto, especiarias e notas florais.

fermentação de café

Fermentação e o defeito de queijo velho

Os microrganismos fermentadores produzem muitos compostos de aroma/voláteis durante a fermentação. Esses aromas podem penetrar no grão de café e, dessa forma, intensificar alguns aromas mais específicos na bebida, como oxidado e frutado, por exemplo. 

Paiva afirma que “muitos ácidos orgânicos são produzidos durante a fermentação, e sua quantidade é variável em relação à variedade do café e terroir das lavouras e processamento pós-colheita”. 

Especificamente em relação ao odor de queijo velho, o ácido isovalérico é o composto responsável por esse aroma indesejável, inclusive já consta na roda de sabores do café como integrante do aroma do café. Esse ácido, destaca Fabiana Carvalho, presente em quantidades significativas no café, não é um componente que favorece o aroma global do café, é como “uma nota dissonante numa sinfonia”.

O aparecimento do ácido isovalérico ocorre devido aos processos fermentativos que têm propiciado condições ideais para o crescimento e desenvolvimento de bactérias no processo fermentativo, entre eles as dos gêneros Bacillus e Lactobacillus, diz Paiva. Ou seja, a presença marcante desse ácido é um indicativo de uma fermentação que não deu certo.

Interessante destacar que o grão de café responde a essa atividade microbiológica que ocorre ao seu redor, isto é, a fermentação não só produz compostos a partir da ação de microrganismos como também a presença desses compostos afeta o metabolismo do próprio grão e, portanto, sua composição. Por isso, a diversidade dos microrganismos e as condições de fermentação resultam em bebidas com sabores e aromas completamente distintos.

Os microrganismos presentes no café têm um efeito simbiótico, ou seja, um auxilia o desenvolvimento do outro. Paiva diz que “os microrganismos normalmente associados à produção do cheiro de queijo velho, Bacillus subtilis e os Lactobacillus, não são capazes de transformar o aminoácido leucina diretamente em outros compostos, mas, na presença da bactéria Streptococcus thermophilus, essa bactéria produz compostos intermediários a partir da leucina e a partir daí os Lactobacillus se aproveitam convertendo-os em ácido isovalérico”.

defeitos do café

Grãos defeituosos e o cheiro “ruim”

Além dos procedimentos pós-colheita, outro fator importante e com grande impacto na formação de aromas do café é a presença de grãos defeituosos. Grãos pretos, verdes (imaturos) e ardidos, conhecidos como PVA, são os defeitos mais comuns e mais estudados. Cerca de 15 a 20% dos cafés produzidos no Brasil são de grãos PVA. O aparecimento desses defeitos ocorre desde os procedimentos realizados no campo, durante o pós-colheita, como no despolpamento e fermentação de grãos defeituosos.

O grande problema dos grãos defeituosos é que reduzem muito a qualidade final do café, uma vez que modificam a composição do café verde e, portanto, prejudicam muito o aroma e o sabor. Diversos estudos mostraram a presença de aromas indesejáveis. Por exemplo, num estudo conduzido com café arábica torrado, os compostos 2-metil-propanal, hexanal, decanoato de etila e dodecanoato de metila foram detectados apenas nos grãos defeituosos. Em outra publicação, inclusive, foi proposto que a presença de alguns aromas, como pirazina, 2,3-butanodiol e ácido hexanóico, seja utilizada como potenciais indicadores de presença de grãos defeituosos.

fermentar café

Cuidados na condução da fermentação

Leandro Paiva ressalta que “a presença do ácido isovalérico e o cheiro que ele proporciona, que prejudica o sabor do café, são evidências de contaminação nas condições de temperatura da fermentação, que podem ser com coliformes termotolerantes, presentes em fezes humanas e animais, e isso é muito grave pois acarreta diversas doenças.” 

E acrescenta: “o problema está na falta de higiene do processo, má qualidade da água e a falta de uso de equipamentos adequados ao processo fermentativo, por exemplo, de difícil limpeza e higienização”.

Portanto, a higiene desde a colheita e durante a fermentação é fundamental para um resultado positivo para o café. Além do uso de fermentos (starter) bem conhecidos ou do controle efetivo quando a fermentação é conduzida por leveduras selvagens (aquelas que acompanham os frutos do café). 

Por fim, Paiva conclui: “a fermentação é um processo que cria condições adequadas ao crescimento de microrganismos, e isso, só é bom quando os microrganismos são benéficos”.

café verde

Mesmo com o aumento da disponibilidade de informações em relação aos procedimentos e técnicas de fermentação de café, ela ainda é muito empregada por produtores que se aventuram de forma experimentativa nesse processo, o que resulta na fermentação negativa. 

No entanto, é relevante destacar que a fermentação, assim como outros processos bioquímicos, precisa ser realizada de forma correta, com protocolos de higiene e controle de processo (tempo, temperatura, pH etc.), para se alcançar o resultado final desejado: a fermentação positiva e um café repleto de aromas e sabores envolventes.

Créditos: Battlecreek Coffee Roasters, Food Manufacture, Barista Institute, EPTV, Caffè Nero (grãos com defeitos), Those Coffee People, Nousnou Iwasaki.

PDG Brasil
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