Olhar, cheirar, provar… como virar um expert na análise sensorial de café
Você já deve ter ouvido alguém próximo falar para você que “a prática leva à perfeição”. Para falarmos sobre desenvolvimento e treinamento de análise sensorial para avaliação de qualidade de café, não tem maneira melhor de começar essa conversa do que recordando essa frase.
Mas como é possível praticar e treinar nossas habilidades sensoriais? Será que existem ferramentas que ajudam nesse processo de reconhecimento dos atributos, e até mesmo defeitos do café?
O PDG Brasil conversou com alguns especialistas e profissionais da área para nos ajudar a entender melhor o tema. Continue com a gente nessa leitura para descobrir um pouco mais sobre esse assunto.
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A leitura da Roda de Aromas e Sabores deve ser realizada de dentro para fora. No centro da roda, estão as informações primárias, mais de base sensorial, e vão se ramificando em camadas mais externas e características cada vez mais específicas, até chegarmos na extremidade exterior, onde há atributos mais complexos. Crédito: Specialty Coffee Association (SCA)
A Roda de Aromas e Sabores como base sensorial descritiva
Antes de mais nada é preciso entender onde começa esse processo de análise sensorial. E a Roda de Aromas e Sabores do Café da Specialty Coffee Association (SCA) pode nos ajudar nessa missão.
A Roda de Aromas e Sabores é uma base descritiva de sensações que o café nos traz. Foi desenvolvida com o intuito de ser usada por profissionais para criar um vocabulário descritivo comum de nomenclaturas sensoriais eventualmente encontradas no café. A ideia era padronizar e direcionar as percepções sensoriais.
São 110 características descritivas reunidas. Além de aromas agradáveis associados à qualidade do café, também aponta características negativas, os chamados defeitos indesejados, provenientes de má qualidade do grão, fermentação exagerada, ou até mesmo erro no processo de torra.
Atualmente, degustadores, baristas, mestres de torra, pesquisadores e até mesmo coffee lovers entusiastas do café de todo o mundo utilizam a roda como um guia, por assim dizer, para colaborar em suas percepções.

Os provadores da Capricornio Coffees são Q-graders certificados. Eles começam avaliando a fragrância do café (pó) e depois o aroma (após adicionar água). Em seguida, focam em outros atributos, como uniformidade, ausência de defeitos, doçura, sabor, corpo, finalização e equilíbrio. Crédito: Capricornio Coffees
Consistência e qualidade na análise sensorial
Existem diferentes tipos de protocolos de avaliação de café. Segundo Edgard Bressani, Diretor da Capricornio Coffees, “tais como a metodologia COB (Classificação Oficial Brasileira), o protocolo de avaliação sensorial do Q-Grader, desenvolvido pelo Coffee Quality Institute – CQI, e o protocolo de avaliação do Cup of Excellence (8 atributos são avaliados e 36 pontos são adicionados para alcançar a nota final que pode chegar a 100).”
“Eu provo no dia-a-dia seguindo a metodologia do CQI, porque é internacionalmente reconhecida. Então, quando viajo, provo com outros profissionais e estamos todos seguindo o mesmo protocolo, avaliando as mesmas coisas, quente, morno e frio, com uma quantidade de pó e de água e ponto de torra que é o mesmo em qualquer lugar”, conta.
Edgard acredita que é “essencial o uso de ferramentas e metodologias e seguir esses guias e protocolos em degustações, para que haja uma consistência em cada avaliação”. Por exemplo, em uma única empresa é preciso que todos utilizem o mesmo critério para falar a mesma língua. Bressani complementa reforçando a seriedade dessas análises sensoriais: “elas são muito importantes no mercado de café, pois ter profissionais treinados e altamente capacitados é primordial para o mercado em geral. Eles é que vão identificar os cafés, criar blends que atendem cada um dos clientes de acordo com suas preferências culturais ou mesmo de compra.”
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O kit de aromas Le Nez Du Cafe é uma das ferramentas que ajudam a construir e refinar a memória de olfato. Crédito: De La Croix Vinhos
Repertório sensorial e memorização de aromas
Para além dos aromas e sabores descritos na Roda da SCA e em outras ferramentas, olfato e paladar têm grande papel na análise sensorial. Podemos considerar que eles são as “ferramentas de base” dessas análises. A neurociência também deve ser levada em conta, pois nos mostra que a cor da xícara ou até mesmo a música que estamos escutando podem impactar numa avaliação sensorial, potencializando, minimizando ou até distorcendo alguma percepção.
Sendo assim, a construção e o refinamento da memória de olfato e paladar então tornam-se processos indispensáveis.
Existem algumas ferramentas de apoio, criadas para padronizar os processos profissionais de análise, podendo aplicar em cada degustação a busca por esses aromas que trazem ainda mais valor a cada dose. E, quanto mais praticarmos nossos sentidos, mais próximos estaremos de um vocabulário extenso e guardado na memória, que será acessado sempre que desejado em qualquer degustação ou análise sensorial de café.
Uma delas é o Le Nez du Café, desenvolvida pela equipe do francês Jean Lenoir para a SCA (à época SCAA, Specialty Coffee Association of America). “Um estojo de madeira que acomoda 36 diferentes dos mais comuns aromas presentes nos principais cafés produzidos em todo o mundo, resultado de um impressionante esforço de diversos aromistas liderado por Lenoir ao longo de mais de 4 anos analisando cafés de mais de 400 diferentes origens”, conta Ensei Neto, especialista em café e experiências sensoriais e um dos responsáveis pela estruturação dos protocolos de avaliação de café da SCAA juntamente com o Mané Alves e Steven Diaz.
O “Le Nez” divide os aromas em 4 grupos:
- ENZIMÁTICOS: mais encontrados no pó de café recém-moído e na infusão recém-preparada. Alguns exemplos são: mel, limão e pepino.
- CARAMELIZAÇÃO DOS AÇÚCARES: encontrados nos vapores que se desprendem da infusão do café e também percebidos na boca quando se realiza a degustação da bebida, como chocolate, caramelo, nozes, baunilha e manteiga.
- DESTILAÇÃO SECA: são melhor percebidos nos vapores que se desprendem da bebida e também no retrogosto. Incluem aromas como cassis, cravo e tabaco.
- DEFEITOS: considerados inadequados para o café, pois causam sensações desagradáveis, como medicinal, fumaça, borracha e carne cozida.

O kit de aromas Scentone propõe uma memorização dos aromas associando-os às lembranças afetivas de cada pessoa. Crédito: Scentone
Lembranças e percepções pessoais também ajudam
Outro kit disponível no mercado é o kit de aromas Scentone, de origem coreana (venda online direto no site da marca Scentone ou no site da SCA). Há um kit mais completo, com 150 aromas diferentes, ou um kit básico, com 100 amostras, no qual as variantes e a intensidade dos aromas no café são listadas com base na análise de sabor. Esse conjunto de dados de sabor são combinados com a biblioteca química feita com a análise de composto químico GC-O (Cromatografia Gasosa-Olfatometria).
A diluição de cada amostra é ajustada considerando o limite de reconhecimento para fornecer um nível de intensidade semelhante entre todas elas, ou seja, o kit é criado de forma que se perceba bem tanto aromas mais delicados, quanto mais potentes. Bressani complementa: “o kit da Scentone traz uma metodologia muito interessante para memorizar esses aromas, associando todas as impressões que nos trazem à memória aquele aroma. O quê, quando e onde”.
“Se sentimos melancia, vamos buscar uma lembrança forte, como, por exemplo, comendo melancia quando tinha oito anos, em casa, aos domingos no almoço com meus pais no verão. Algo que você consiga guardar mais fácil.”

O sistema de cápsulas do kit inglês FlavorActiV evita uma possível fuga de sabor. Crédito: FlavorActiV
Existem também as cápsulas inglesas da FlavorActiV, que trazem padrões de sabor positivo e também de defeitos do café, criadas pela equipe sensorial especializada da FlavorActiV ao lado de James Hoffman, da Square Mile Coffee, Spencer Turer e equipe da Coffee Enterprises e John Thompson, da Coffee Nexus.
À venda no site europeu da FlavorActiV, é uma seleção de 24 padrões de sabor, apresentada em embalagens de sabores individuais. Cada embalagem contém 5 cápsulas (mas também é possível encomendar um kit mais completo), feitas a partir de uma substância simples e de fácil dosagem, que colabora para o sabor ficar sempre estável.
Segundo a empresa, o kit já foi utilizado por mais de 50.000 degustadores em treinamentos. E a opção por embalar em cápsulas é a grande redução da quantidade de espaço livre, evitando uma possível fuga de sabor. Vale lembrar que, como são para consumo humano, é importante que esses produtos tenham certificações que garantam o consumo seguro.

Criado por duas pesquisadoras brasileiras, o Kit de Sabores [café], da The Coffee Sensorium, reúne compostos que são aplicados no café. Crédito: The Coffee Sensorium
MEMORIZAR OS SABORES
Para além dos aromas e do olfato, a neurocientista Fabiana Carvalho, junto com sua parceira no The Coffee Sensorium Verônica Belchior, cientista, Q-Grader, e instrutora em cursos focados nas áreas de análise sensorial de cafés especiais e química do café, desenvolveram o Kit de Sabores [café]. Uma ferramenta brasileira, desenvolvida em parceria com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) – 30% do lucro das vendas são destinados à compra de materiais de laboratório.
À venda no site The Coffee Sensorium, o Kit de Sabores [café] contém 21 referências, entre elas, banana, floral (doce), ervilha fresca, pão mofado, cereal, pêssego, cereja, “verdolengo”, baunilha, açúcar caramelizado, queijo maturado e floral (herbal). Cada referência contém 25 doses/utilizações.
Segundo a Fabiana, o grande desafio foi justamente levar o aroma para a boca. “Fizemos uma lista do que deveria conter, usando como referência a Roda de Sabores da SCA, contendo os grandes grupos de sabores como o frutado, floral, doce, especiaria, noz, verde vegetal e medicinal. “Buscamos nela as referências-chaves e, na literatura científica, os compostos e suas concentrações. Porque uma coisa é um composto ter cheiro de cereja, outra bem diferente é gotejar esse composto na xícara de café sem modificá-lo. Foi extremamente trabalhoso ajustar as concentrações das soluções. Para isso, tivemos o auxílio de uma profissional da área de química.”
O material tem como objetivo ser útil na padronização de referências e descritores para sabor – ou seja, a referência será adicionada no café para identificação retronasal, podendo seguramente ser ingerida.

No curso de torra dado por Ensei Neto, os alunos degustam cafés intensamente para treinar e ampliar seus repertórios sensoriais. Crédito: Ensei Neto
FERRAMENTAS INATAS A NÓS
Agora que você já conhece as ferramentas sintéticas que são mais utilizadas nas análises sensoriais de café pensando principalmente em avaliações intrínsecas, vale lembrar que existem ferramentas que fazem parte de nós, e podem ser “treinadas” e até “calibradas” de maneira descontraída e eficiente: nariz e boca, aliados às nossas memórias já adquiridas. Nesse caso, ampliar a biblioteca sensorial de maneira natural é a chave para o progresso.
Ensei Neto vai além, lembrando que nosso corpo funciona como um todo e é a ferramenta mais genuína que pode existir. “Vale sempre a pena lembrar que todos nós somos incríveis equipamentos de avaliação sensorial que funcionam o tempo todo. Seja uma leitura estética que pode ser feita pela visão ou audição, ou a percepção de aromas e sabores de um campo de flores. O princípio de um processo de análise sensorial começa, no nosso caso, em ter um alto nível de autoconhecimento, que significa que você pode conhecer perfeitamente suas reações aos diferentes tipos de estímulos sensoriais.”
Midori Martins é coordenadora pedagógica, instrutora e barista atualmente no Coffee Lab, reconhecida cafeteria, microtorrefação e escola de café. A escola, uma das pioneiras do país, oferece diversos cursos, entre eles o de “barista”, “barista avançado” ou “barista sênior” que abordam a análise sensorial com rigor. “Ela é usada em todos os momentos, mas principalmente no curso de barista, que é o primeiro curso, onde a primeira experiência é mapear a língua dos alunos para que eles possam entender os pontos diferentes de percepções dos gostos básicos (acidez, doçura, amargor, salgado) e assim conseguirmos começar o exercício de auto calibragem.”
Midori reforça essa afirmação de que é preciso se conhecer, baseada em sua experiência. “Levar para o nosso dia-a-dia esse olhar um pouco mais minucioso sobre os aromas e sabores que estamos sentindo é o principal ponto para construir e desenvolver nosso sensorial. A partir disso, vem a prática de provar muito café de qualidade a partir de algum protocolo – como o cupping, por exemplo – e sempre que possível fazer essa prática com alguém que já prove café. Acho que esse percurso e sua repetição são fundamentais para qualquer barista compreender melhor sobre análise sensorial. Portanto praticar foi e é extremamente importante no meu dia a dia de barista e instrutora.”
A profissional também deixa a dica para ampliar a biblioteca de análise sensorial: experimentar e sentir aromas e sabores de tudo o que estiver ao nosso alcance. “Se for falar de forma prática: assim que possível vá ao mercado municipal da sua cidade, prove e cheire tudo que é possível. Pode parecer bobo, mas é um exercício extremamente importante para quem trabalha com café.”
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Praticar frequentemente a degustação de diferentes cafés em protocolos como o cupping contribuem para a evolução do nosso repertório de olfato e paladar. Crédito: Capricornio Coffees
Conversamos também com Túlio, idealizador do projeto Nerd Coffee House, onde atua como representante comercial, barista, provador e torrador de café. Para ele, a análise sensorial também começa a partir das referências que já temos, “lembranças mais remotas da infância e vai até o treino diário com novos referenciais”.
“Portanto, o consumo de alimentos e bebidas de diferentes aromas, gostos, sabores, texturas e aparências é fundamental. Como também provar diferentes categorias de qualidade. Como por exemplo, acredito que incluir na rotina cafés de diferentes categorias como o superior e o gourmet, além do café de especialidade, é válido e considerável para o desenvolvimento dos sentidos e percepção desses sentidos.”
Ensei Neto também sugere que a gente pratique ao cozinhar. “É um excelente exercício para desenvolver a análise sensorial, pois a cada instante você precisa conferir o que acontece na panela. É sempre empregada a visão, o olfato e também o paladar. Outra alternativa é cheirar e experimentar frutas e flores num pomar.”
Ele ainda reforça que “os processos de identificação passam por três áreas do conhecimento:
- fisiologia humana, para entender como nosso ‘equipamento’ reage a cada estímulo;
- formação da memória, para fazer uma boa correlação entre o que uma pessoa vivenciou e a experiência presente;
- e um pouco de ciências (química e bioquímica) para ter noção de como algumas substâncias são formadas.

Crédito: Ensei Neto
E, por fim, a reflexão que fica é que a complexidade do nosso corpo é incrível, e abastecê-lo, seja com ferramentas naturais ou sintéticas, é um exercício diário para quem quer desenvolver suas habilidades analíticas sensoriais. Vale utilizar os kits, exercitar o olfato e o paladar em uma feira para se conhecer melhor ou fazer cursos.
Fabiana reforça sobre a importância de se atentar ao propósito da análise sensorial. “Temos as análises sensoriais pelo ponto de vista dos especialistas, com uma avaliação de qualidade, mas também temos as avaliações voltadas para o consumidor, onde a qualidade intrínseca do grão não é o grande ponto, mas sim o que o consumidor final prefere”, explica.
“São as chamadas avaliações hedônicas.” Para a especialista, a indústria precisa apresentar o que é a qualidade, do ponto de vista técnico, mas não pode tentar forçar o consumo, pois o consumidor pode decidir tomar o que ele quiser. “Quem somos nós para dizer ao consumidor o que é bom ou o que é ruim? O mercado de cafés especiais pode apresentar o conceito da qualidade intrínseca, cumprindo assim seu papel.”
Crédito foto de destaque: Capricornio Coffees
PDG Brasil
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