Como os microrganismos afetam a fermentação e o perfil sensorial do café?
À medida que a indústria cafeeira se desenvolve e cresce, os produtores e pesquisadores continuam inovando e ultrapassando fronteiras em relação ao processamento e à fermentação. O objetivo final é oferecer sabores incríveis e melhorar a qualidade da xícara.
Sempre que a fermentação estiver envolvida, os produtores e cientistas experimentam vários microrganismos e examinam como a sua relação ímpar com o processo pode afetar o perfil sensorial e a pontuação do café.
Para examinar mais profundamente como os microrganismos afetam a fermentação e o perfil sensorial do café, falei com um produtor, um Q grader (profissional de degustação e classificação de cafés), um professor e um mestre de torra, todos envolvidos com o projeto brasileiro Nucoffee Artisans. Eu perguntei como a adaptação e combinação de microrganismos podem afetar a fermentação do café e melhorar o perfil de xícara. Continue a ler para saber o que disseram.
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FERMENTAÇÃO, MICRORGANISMOS, E FERMENTAÇÃO CONTROLADA
A fermentação do café é um processo natural que começa a ocorrer assim que uma cereja de café é colhida. Ocorre quando a água, o açúcar, e os amidos dentro da cereja começam a se decompor em ácidos e álcoois.
A fermentação ocorre, tipicamente, através de duas principais maneiras: aeróbica (um ambiente rico em oxigênio) ou anaeróbica (um ambiente com nenhum oxigênio). Ambos os estilos de fermentação podem ser controlados de formas diferentes.
Sempre que a fermentação ocorre, os microrganismos são responsáveis pela conversão desses açúcares e amidos em ácidos e álcoois. Existem milhares de microrganismos identificados na fermentação, mas alguns dos mais comuns incluem leveduras (como saccharomyces cerevisiae), bactérias (como lactobacillus) e fungos.
Cada microrganismo individual afeta a fermentação (e, por conseguinte, o sabor do café) de uma forma muito diferente. Por enquanto entendemos que alguns (em particular saccharomyces cerevisiae e lactobacillus) afetam o cheiro, a cor e o pH de um café, mas os efeitos que outros microrganismos têm sobre a fermentação ainda estão sendo estudados.
Rosane Schwan é professora da Universidade Federal de Lavras, em Lavras, Minas Gerais. Ela falou mais sobre como microrganismos afetam a fermentação.
“Os principais grupos microbianos de café incluem bactérias, leveduras e fungos filamentosos”, diz Rosane. “Os gêneros/espécies microbianas específicas variam entre as áreas produtoras de café, provavelmente devido a condições ambientais, variedades de café e métodos de processamento. [Consequentemente, afetam] a qualidade de xícara [de forma diferente].
“Os métodos de processamento variam de fazenda para fazenda, dependendo das condições climáticas, maturação das frutas, disponibilidade de capital, máquinas e tecnologia.”
Mais recentemente, a fermentação controlada foi adotada em todo o setor cafeeiro para oferecer maior segurança aos produtores que fazem testes com o processamento do café. Ao monitorar e controlar variáveis como temperatura e tempo, os produtores podem gerenciar com mais eficiência os sabores de seu café e, então, manipular seu perfil sensorial.
Além disso, é importante notar que a fermentação não controlada ainda não é totalmente compreendida, e pode (no pior dos casos) acabar por ser potencialmente prejudicial para o consumidor final.
FERMENTAÇÃO NATURAL E CULTURAS INICIAIS
Em comparação com os setores de bebidas onde a fermentação tem sido usada há milhares de anos (como cerveja e vinho), a fermentação no café ainda está em um estágio relativamente precoce de entendimento.
No entanto, sabemos com certeza que a fermentação pode ocorrer tanto naturalmente, sem a contribuição externa do produtor, como através da utilização deliberada de “culturas iniciadoras”.
A fermentação natural depende dos microrganismos que já estão presentes dentro e ao redor de uma cereja de café para quebrar os açúcares e amidos. No entanto, utilizar culturas iniciadoras é como adicionar um novo “ingrediente” que inicia e orienta a fermentação de uma determinada forma.
Rosane explica que cada cultura inicial é única. Assim, elas podem levar a uma variedade de resultados finais em termos do perfil de sabor de um café. “A produção de compostos específicos de [sabor] se deve às ‘culturas iniciadoras’, diferentes vias de fermentação durante esse complexo processo [de fermentação].”
Ainda afirma que, enquanto a fermentação natural possa ser frequentemente imprevisível e ter um impacto incomum no perfil de xícara, “o [projeto] Nucoffee Artisans selecionou culturas iniciadoras que melhoram a qualidade do café”.
“Nossa pesquisa na UFLA propôs alternativas tecnológicas para maior controle sobre a fermentação. Isso envolve um processo padronizado que garante a produção de novos sabores de café e [promove o desenvolvimento de] perfis sensoriais desejáveis.
“Em geral, o desempenho microbiano foi melhorado pelo uso de condições anaeróbicas em lotes fechados. Ajudou também inibindo [a presença de] fungos e bactérias indesejáveis.”
MICRORGANISMOS E FERMENTAÇÃO NO CAFÉ
O projeto Nucoffee Artisans tem sido o produto de uma parceria de desenvolvimento entre Syngenta-Nucoffee, UFLA e Rosane. O projeto estudou a fermentação controlada e sua relação com uma variedade de microrganismos.
Isolando microrganismos selecionados, o projeto se estabeleceu para “transformar” a química da fermentação do café e gerar novos precursores de sabor e aroma.
Jorge Fernando Naimeg, do Cerrado Mineiro, Minas Gerais, foi um dos produtores envolvidos no projeto. Ele diz: “[o projeto] usa leveduras isoladas do próprio café que são purificadas e multiplicadas.”
Produtores então usam estes microrganismos na fermentação controlada. Monitoram cuidadosamente a temperatura, o pH e o tempo para melhorar a consistência.
Jorge acrescenta que este projeto também estuda como diferentes microrganismos reagem com diferentes variedades de café. Ele descreve os resultados como “interessantes”.
“[Mesmo através] de diferentes variedades, altitudes e processos, todos nós tínhamos perfis sensoriais semelhantes.” Efetivamente, através do controle da fermentação com os microrganismos escolhidos, os produtores conseguiram tornar seus perfis sensoriais mais consistentes.
Os resultados têm sido testados há quatro anos nas principais regiões de cultivo do Brasil, e entregam o mesmo perfil de sabor ano após ano em cada fazenda. A ideia é que quando um comprador de café verde ou um torrefador faça uma parceria com um produtor que usa estes processos, pode-se garantir o mesmo nível de qualidade de forma regular, sem flutuação sazonal.
Acrescenta ainda que este projeto também deu apoio aos produtores para “confiarem” nas tecnologias e na pesquisa por trás da fermentação, através dos resultados demonstrados.
Finalmente, ele observa que um protocolo de fermentação bem comunicado e completo deu aos produtores uma lista de instruções a seguir durante todo o processo de fermentação. Isto, diz ele, os ajudou a compreender e se sentirem mais confiantes sobre os seus resultados.
ALTERAÇÕES NO SABOR
Com mais de 20 anos de pesquisa em diferentes microrganismos e métodos de fermentação, especialistas do Nucoffee Artisans estudaram mais de 3,000 microrganismos diferentes com foco em como eles influenciaram a fermentação e o sabor do café. Só em 2020, o projeto passou 383 kits de microrganismos para 323 produtores (cada um capaz de produzir cerca de 20 sacos).
Jorge diz que o projeto permitiu que os produtores isolassem microrganismos que eram benéficos para a fermentação do café. “Esta nova tecnologia inovadora foi capaz de chegar ao produtor a um custo acessível”, conta. “Foi relativamente simples e abriu uma nova gama de possibilidades para nós, produtores.”
Esta nova gama de possibilidades talvez seja mais bem explorada nos perfis de sabor incomuns que estas novas técnicas de fermentação produzem.
O Brasil é o maior produtor de café do mundo. A grande maioria do café cultivado no país é de processamento natural ou cereja descascado. Frequentemente, os grãos brasileiros são encorpados, de baixa acidez, e trazem notas doces, de chocolate.
No entanto, utilizando essas técnicas, os produtores brasileiros podem alterar o perfil de sabor de seus cafés. Isto pode os ajudar a se destacarem dos outros no mercado.
Como parte do projeto Nucoffee Artisans, os produtores foram treinados para utilizar as técnicas e, posteriormente, produziram mais de 1,000 lotes com pontuação entre 80 e 90 pontos.
Silvio Leite é um Q grader na Agriffee. Ele diz: “Os sabores [deste projeto] podem ser simplificados em três grupos distintos … em primeiro lugar, predominantemente sabores doces (notas de açúcar mascavo, capim-limão).
“Depois disso, temos cafés frutados, trazendo tanto frutos secos (passas, tâmaras), como o “lado mais fresco” (manga, cerejas, morangos).”
Silvio também observa que o terceiro grupo foi caracterizado por um retrogosto de acidez que ele descreveu como “não agradável”, mas notou que isso é evidência de onde os “processos devem ser ajustados”.
Michal Socha é o torrefador responsável no Single Origin, da Polônia. Ele diz que os cafés que ele tem comprado deste projeto são “muito originais e incomuns” e descreveu “notas muito visíveis de morango”.
“O desenvolvimento dessa cultura de bactérias e leveduras também inibe a multiplicação de fungos patogênicos”, acrescenta Michal. “Isso afeta positivamente a qualidade sensorial do café.”
Ambos concluíram que, em conjunto, graças ao uso desses microrganismos exclusivos em ambientes de fermentação controlada, a diversidade de sabores produzidos foi incomum (e em alguns casos desconhecida) para o café brasileiro.
UTILIZANDO FERMENTAÇÃO CONTROLADA PARA MELHORAR A RENDA DO PRODUTOR
Utilizando este projeto como referência, podemos concluir que a experimentação de microrganismos em fermentação controlada tem a oportunidade de melhorar a qualidade e consistência da xícara para o produtor.
Uma das principais oportunidades para os produtores é o efeito que a fermentação controlada tem em termos de valor agregado. Normalmente, o valor é predominantemente agregado pelos torrefadores. Aproveitando os processos de fermentação para melhorar o sabor e aumentar a qualidade, os produtores podem diversificar a oferta e se tornar mais competitivos no mercado.
Silvio diz: ‘[usando] essas possibilidades e processos, os produtores podem oferecer o que poderia ser chamado de “novo menu” de sabores de café.
“Isto poderia atender a uma gama [muito mais ampla] de compradores, tais como aqueles que gostam de um perfil muito doce ou super frutado, [ou mesmo sabores florais].”
Além disso, Jorge diz que ao usar microrganismos para melhorar a consistência, assim como o Nucoffee Artisans, os produtores podem oferecer aos compradores um perfil de sabor mais estável.
“A fermentação controlada permite a repetição de perfis sensoriais, e [pode] estimular o aroma, sabor e acidez dos cafés.
“Isto permite que diferentes variedades alcancem um perfil de sabor semelhante, mas com diferentes nuances e intensidades.”
TORREFADOR & INTERESSE DO CONSUMIDOR
Em todo o setor cafeeiro especial global, há uma demanda cada vez maior pela fermentação. Isto é porque fornece aos torrefadores e aos consumidores a oportunidade de experimentar perfis novos e originais de sabor.
“Enxergo isso como um novo mercado”, diz Jorge. “[Especialmente] para os consumidores que procuram novas experiências e perfis de xícara surpreendentes. Isto então [beneficia os produtores financeiramente].
“Como o processo é feito à mão, é muito técnico e exige muito cuidado, os consumidores, creio eu, estarão dispostos a pagar mais pelo café.”
Isso se refletiu nos resultados do projeto. Durante a Semana Internacional do Café, os produtores foram reconhecidos com um ranking dos 50 melhores lotes. Hoje, há mais de 2.000 sacas em estoque com pontuação entre 86 e 90 pontos.
Michal acrescenta que estes cafés experimentais dão às torrefações oportunidades únicas de trabalhar com cafés de alta qualidade com perfis de sabor exótico. Ele também explica que esses cafés, em particular, também são adequados para filtro e para café espresso.
“Tanto nós, como uma torrefação, como os nossos clientes, fizemos este café utilizando vários métodos, de filtro e máquina de café espresso. Em todos os métodos, o café é fantástico.”
Para procurar novos mercados para estes cafés, a Nucoffee começou a realizar avaliações virtuais nos EUA e na Europa com a esperança de gerar mais interesse. Para os produtores, o projeto estabeleceu o objetivo de “estimular a produção de novos perfis de café” nas próximas semanas e meses.
A plataforma Nucoffee trabalha com mais de 2.000 produtores de café, e a empresa acredita que é possível introduzir novas tecnologias em várias fazendas brasileiras, para revelar novas oportunidades de mercado e novos sabores.
Embora a fermentação controlada e os microrganismos ainda sejam objeto de pesquisa contínua no setor cafeeiro, esse projeto mostra que há uma oportunidade considerável para produtores, torrefadores e consumidores. O potencial para os produtores aproveitarem esses métodos de produção para revelar novos perfis sensoriais é enorme.
Traduzido por Daniela Andrade
Crédito das imagens: Nucoffee, Fazenda Central AP, Fazenda Pantano, Sítio Armadilllo
PDG Brasil
Nota: Nucoffee é uma patrocinadora do PDG Brasil
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